NATAL NO EPHEMERA: UMA CARTA NO NATAL DE 1962 DESCREVENDO O SISMO DE 26 DE DEZEMBRO

Carta de António dos Santos Ferreira (pai, residente em Lisboa) para Rodolfo Hattenberger dos Santos Ferreira (filho, residente em Mulhouse, França), datada de 26 de Dezembro de 1962.


Transcrição:

“Lisboa, 26 de Dezembro de 1962

13ª carta

Atenção! Esta carta não pode ser lida á Anna

 

Meu querido Filho

São 9 horas da manhã. Estou a preparar-me para tomar coragem para saltar da cama. O frio continua violento. Ontem: 15º negativos nas Penhas da Saude; 0,2 negativos em Lisboa; 2 positivos na Praia da Rocha (o que se julga raríssimo).

De repente, sinto aquele conhecido e costumado tremor no prédio que tem origem na passagem de camions bem carregados. Primeiro, um pouco ao longe. Depois o tremor acentua-se. É o camion que vem a aproximar-se. Estará quási em frente ao prédio. E o tremor intensifica-se. E é maior ainda. Cada vez maior. Sentem-se já ruídos dentro de casa. Objectos que caiem no chão. O préedio balanceia mesmo. Não é um camion. É um grande e prolongado tremor de terra. Assusto-me. Oiço a voz da tua  Mãi que chegou ao escritório e parou, por lhe faltar o ânimo para continuar a andar. Chamo-a para o pé de mim. O prédio está sendo abanado com tanta violência que chego a admitir uma derrocada. A tua Mãi chega, agarra a minha mão. Tudo treme ainda, mas mais docemente. Pouco a pouco, serenamos. Julga-se que o perigo tenha passado.

Uma travessa, comprada há anos na Nazaré, que a Mamã empoleirara num suporte de arame, colocado naquele móvel da casa de jantar posto perto da janela – caiu ao chão e escavacou-se; o frade de madeira, oferta da Madrinha, tombou sobre a prateleira em que se exibe; um dos frades músicos, o que toca violino, tombou igualmente sobre o tampo do aparelho de telefonia. Foi sorte não ter caído ao chão.

As reproduções de pinturas, penduradas sobre o divan, parece que dansaram nos pregos que as sustêm. Uma cafeteira com leite, poisada na pedra da chaminé, muito mal cheia, esparralhara parte do seu conteúdo à sua volta. Parece que alguém andou dansando com ela.

Horas depois, a Emissora disse que as agulhas haviam saltado nos sismógrafos – pelo que não era possível fornecer elementos seguros àcerca do tremor de terra. Afirmaram, porém, que não se haviam verificado vítimas; apenas paredes rachadas, telhados e chaminés derruidos.

– A tua Mãi comentava no fim:

– Olha se nós temos morrido os dois. Lá ficava o Rodolfo sem os pais de um momento para o outro!

Por mim, digo-te que tenho assistido a vários tremores de terra. Mas este foi o único em que o pânico me invadiu.

Será bom não contares este episódio à Ana. Se o calor a tem impedido de voltar a Portugal, podemos ter a certeza de que a minha descrição seria suficiente para aqui não voltar, quer de verão, quer de inverno.

Quando entrei em casa à hora de almoço tive o grande prazer de ver um livro que me enviaste com reprodução de belas fotografias. É um rico livro. Fiquei satisfeitíssimo e muito to agradeço.

Cá vai um grande abraço de agradecimento.

Algumas das fotografias são fantásicas de concepção. Não sei se fixaste uma que teria sido feita, in nomine, no da 5 de Maio de 1945, e na qual o fotógrafo se colocou perto dum monumento em tal posição que a espada de uma das figuras desse monumento ameaça furar a bandeira nazi que continua desfraldada no alto de uma porta que faz lembrar a de Brandeburgo. É admirável.”


NOTA: a magnitude do sismo foi de 5.7.

 

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