MARIA MAFALDA VIANA – CADERNO DACTILOGRAFADO COM O LIVRO DE EUGÉNIO DE CASTRO, A SOMBRA DO QUADRANTE

ACTUALIZADO

 

Caderno do Arquivo e Biblioteca Ephemera

com o livro de

Eugénio de Castro, A Sombra do Quadrante

No Arquivo e Biblioteca Ephemera, há um caderno de formato aproximado do A5, com o livro de poesia A sombra do Quadrante de Eugénio de Castro (a que passarei a referir-me como Caderno Ephemera-ECastro). Este livro foi publicado pela primeira vez em Coimbra, em 1906 (ed. F. França Amado). Esta edição, conforme aparece explicitado no início, a seguir à folha de rosto, teve “… uma tiragem especial de quatro exemplares em papel Whatman, numerados e rubricados pelo autor”.

Depois desta data, o livro foi reeditado na Imprensa Nacional em 1927, juntamente com outros dois (Constança; Depois da Ceifa) de entre os muitos títulos publicados por Eugénio de Castro. Em data dada como imperceptível pelo Catálogo da Biblioteca Nacional (“19…”), houve uma tradução em espanhol deste livro, feita pelo poeta espanhol Francisco de Villaespesa, um admirador do poeta português: Eugénio de Castro, La sombra del Cuadrante, trad. de Francisco Villaespesa, Madrid, 19…[1].

Desta obra, encontram-se na Biblioteca Nacional três exemplares da 1ª Edição (Coimbra, Edição F. França Amado, 1906). Dois deles estão nos Impressos Reservados; um destes teve como seu possuidor Fialho de Almeida (RES 5059 P).

Na Biblioteca da Universidade de Coimbra, há três exemplares da 1ª Edição, Coimbra-1906:

  1. Um exemplar que pertenceu a Carolina Michaëlis de Vasconcelos e Joaquim de Vasconcelos (cota 6-5-15 Biblioteca da UCFL). Este exemplar tem uma dedicatória do autor.
  2. Um exemplar que pertenceu a Mário Brandão e Lígia Cruz (cota 9-(2)-2-22-37 c. 5 da Biblioteca UC Biblioteca Geral). Este exemplar tem uma dedicatória do autor a Mendes dos Remédios e é também assinado pelo editor França Amado.
  3. um exemplar que teve como antigo possuidor Livraria Visconde da Trindade (cota V. T. – 6-3-23).

Na Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, há dois exemplares da 1ª Edição, Coimbra-1906 (cotas: PV/889; PV/890)

 

O Caderno Ephemera-ECastro

I- Descrição física do Caderno

Trata-se de um caderno feito artesanalmente com folhas cortadas e cosidas não pelo local onde ficaria a dobra das folhas dobradas em caderno, mas as folhas são cortadas e a costura, com pontos de aproximadamente 2 cm., é feita a 1,4 cm. de distância da extremidade lateral (esquerda). Nas páginas 14, 18 e 26, a costura não deixa ler o fim de algumas linhas.

O Caderno tem 61 páginas e as suas medidas, próximas das do formato A5, são de 21 cm. x 16,6 cm.

O texto é dactilografado a duas cores: a roxo, a maior parte do texto; a vermelho, o título, epígrafes, texto correspondente a itálico na Edição Coimbra-1906 e alguma fala dentro dos poemas. No Índice (página 61), vem a vermelho, ao alto da página, a palavra “Índice”, o nome do primeiro poema (“Epigraphe”), o ponteado que faz a correspondência entre o nome de cada poema e o número da página, e os números I, II, III, IV, V, que individualizam cada um dos poemas do conjunto “Os Meus Filhos”; tudo o mais no índice (nomes dos poemas e números das páginas) vem a roxo.

Algumas palavras têm, acrescentado, um acento circunflexo manuscrito.

O caderno não apresenta qualquer data, nem na folha de rosto, nem em nenhum outro local. Porém, o que parece ser uma certa “fluência” da transcrição dos poemas na ortografia anterior à reforma de 1911, denuncia a possibilidade de uma data próxima ou coincidente com a da publicação do livro de Eugénio de Castro, em 1906. Regista-se uma ou outra excepção, que todavia não põe em causa esta aproximação da data provável do Caderno Ephemera-ECastro

A capa do Caderno Ephemera-ECastro coincide com a folha de rosto, onde se encontra o nome do livro (A Sombra do Quadrante), o do autor (Eugénio de Castro) e, abaixo do seu nome, a indicação “da Academia Real das Sciencias”.

No canto superior esquerdo da página 3, o Caderno tem uma assinatura carimbada que não é fácil de ler. Parece começar por um V (ou U) maiúsculo seguido de ponto à frente, em baixo, onde o V curva, antes de o traço voltar acima. Mas partir da sua haste superior direita logo se forma o começo de uma letra, que não é fácil de distinguir. A assinatura perece ser “V. Maya” (ou U. Maya) ou então “V.?Caya”

II. Algumas diferenças significativas relativamente à 1ª Edição do livro: Coimbra, F. França Amado Editor, 1906

         Diferenças no seu aspecto físico

No Caderno Ephemera-ECastro, há em alguns locais uma folha de papel vegetal que separa e individualiza partes do livro, o que não tem qualquer correspondente na 1ª Edição deste livro: Coimbra, 1906:

  1. a) entre as páginas 2 e 3 (página 3: dedicatória a Miguel de Unamuno, com epígrafe de Catulo)
  2. b) entre as páginas 4 e 5 (página 5: a do primeiro poema, “Epigraphe”.
  3. c) entre as páginas 24 e 25 (página 25: começa o poema “O Elmo”).
  4. d) entre as páginas 30 e 31 (página 31: começa o poema “Crepusculo” (pp. 31-36).
  5. e) entre as páginas 38 e 39 (página 39: começa o poema “O Quadrante”).
  6. f) entre as páginas 46 e 47 (página 47: começa o poema “Horto Florido”).
  7. g) duas folhas de papel vegetal entre as páginas 48 e 49 (onde começa o conjunto de cinco poemas “Os Meus Filhos”).
  8. h) uma folha de papel vegetal entre as páginas 58 e 59 (com o “Epilogo”).

Temos assim sete grupos de poemas:

  1. “Epigraphe”, “Inscrição”, “Passeio Nocturno”, “Tristissima”, “Saudades”, “Hora Suprema”, “Rompimento”, “O Ermitão”, “Á Volta da Fonte”, “O Jazigo”, “Olhando as Nuvens”.
  2. “O Elmo”, “Flores Sêccas”, “Sob os Olhos de Deus”
  3. “O Crepusculo”, “Diamantes e Perolas”
  4. “O Quadrante”; “Carpe Diem”
  5. “Horto Florido”
  6. “Violante Maria Luiza”, “Martim”, “Luiz”, “Constança”, “Mafalda Ermelinda”
  7. “A Minha Mulher”

    Deste modo, no Caderno Ephemera-ECastro, ficam vários grupos de poemas individualizados, o que parece ser diferença significativa, pois, aparentemente, nada justificaria a formação destes grupos de poemas da parte de um transcritor que apenas copiasse o livro a partir, neste caso, da 1ª edição. Independentemente de um sentido que presida a esta divisão dos poemas, trata-se de uma opção que se compreenderia sendo ela tomada por quem, mais do que um simples leitor e transcritor, teria uma ligação privilegiada com os poemas, muito mais próxima do que pode ser a de um leitor vulgar – o seu autor.

Diferenças na lição do texto relativamente à 1ª Edição – Coimbra, F. França Amado Editor, 1906

No seu conjunto, a lição do texto deste caderno é próxima da lição da edição de 1906. As diferenças correspondem, em parte, a gralhas como faltas ou presenças de acento (agudos e circunflexos), trocas de letras ou lapsos de letras em uma palavra. Outras diferenças, em número não elevado mas significativo, são maiores e, porventura, mais difíceis de explicar, pois a diferença, em certos casos, é mesmo entre palavras.

Algumas destas diferenças na lição deste caderno dão margem a que se questione a sua origem, e isto mesmo em alguns casos em que estas têm a aparência de meras gralhas, mas também em casos de diferenças de outra ordem.

Descrição das principais diferenças por tipos

(nas páginas iniciais, antes do texto)

1– Folha de rosto: no Caderno não aparece a data nem o local de edição: 1906-Coimbra, assumindo que o Caderno corresponderia a uma transcrição desta edição.

2– Na epígrafe de Catulo (do Carmen I[2]), abaixo da dedicatória a Miguel de Unamuno:

         . nanque (Caderno Ephemera-ECastro) por namque (Ed. coimbra-1906)

O caderno Ephemera-ECastro regista uma variante (nanque) da forma mais corrente da conjunção latina namque, presente na Edição Coimbra-1906. Trata-se de uma diferença que não deixa de suscitar alguma estranheza, porquanto embora não seja a forma comum e canonizada nos dicionários, não é impossível encontrar a forma nanque, não se tratando, portanto, propriamente de um erro ortográfico do latim, o que seria facilmente explicado com a hipotética ignorância em latim da pessoa que dactilografou este caderno. De facto, mais fácil é supor que originariamente o autor, conhecedor do latim, teria usado esta forma mais rara (nanque) e que o editor a emendou para a mais comum (namque), que aparece nos dicionários mais conhecidos (Gaffiot, Oxford, Porto Editora) do que o inverso (e. g., no Thesaurus Linguae Latinae de Estienne, que regista a forma nanque).

Também poderia tratar-se de uma gralha devida a uma possível proximidade dos caracteres na máquina de escrever, no caso de o teclado ser “qwerty”, o que, todavia, a este tempo, em Portugal, seria talvez menos provável. Além disso, não deixa de ser curiosa a coincidência de justamente a “gralha” assim justificada, precisamente originar uma outra forma possível para esta conjunção latina.

Note-se também que um erro numa das primeiras páginas que antecedem o texto mais dificilmente passaria despercebido ao dactilógrafo, o que para quem tem o cuidado e o esmero de dactilografar um livro completo, tão cuidadosamente cosido, justificaria porventura fazer uma página nova, portanto, dactilografando-a de novo, até por ser tão pouco o que tem escrito.

(no texto poético)

3– pequenas diferenças de ortografia

a) “chama” (Caderno Ephemera-ECastro) por “chamma” (Ed. Coimbra 1906) – no poema 8, “Ermitão” (estrofe 2, verso 3).

b) “beleza” (Caderno Ephemera-ECastro) por “belleza” (Ed. Coimbra 1906) – no poema 15, “Crepusculo” (estrofe 20, v. 1)

c) “escultura” (Caderno Ephemera-ECastro) por “esculptura” (Ed. Coimbra, 1906) – no poema 17, “Quadrante” (estrofe 16, v. 3)

mas

d) “alli” (Caderno Ephemera-Ecastro) por “ali” (Ed. Coimbra 1906) – no poema 11, “Olhando as nuvens” (estrofe 13, v. 4)

e) “fructos” (Caderno Ephemera-ECastro) por “frutos” (Ed. Coimbra 1906) – no poema 15, “Crepusculo” (estrofe 22, v. 3)

f) “impelles” (Caderno Ephemera-Ecastro) por “impeles” (Ed. Coimbra 1906) – no poema 18, “Carpe Diem” (estrofe 6, v. 1)

As variantes situam-se na grafia de certos grupos de dupla consoante, como “mm” ou “ll”, usados na norma anterior a 1911 quando a etimologia o justificava. Dada a quase ausência de erros neste domínio, a mão do Caderno Ephemera-ECastro parece ser a de alguém familiarizado com esta grafia. Tal não exclui, porém, a eventualidade de um engano, como o esquecimento da dupla consoante em palavras como “chamma”, “belleza”. Em todo o caso, a palavra “chamma” ocorre noutro ponto do texto grafada com a dupla consoante “mm”, no soneto “Violante Maria Luiza”, estrofe 2, v. 3, p. 50; o mesmo acontece com a palavra “belleza”, grafada com a dupla consoante “ll” no soneto “Tristissima”, estrofe 2, v. 2 (p. 10). Quanto a “esculptura”, note-se que, a este tempo, era admitida também a grafia “escultura” (cf. e. g. Cândido de Figueiredo, Diccionário da Língua Portuguesa, vol. I, Lisboa, Livraria Editôra Tavares Cardoso, 1899).

Note-se também, por outro lado, como nos casos d), e) e f) a situação é a inversa. Não se trata propriamente de casos de hipercorrecção. As formas “alli” e “fructos” coexistem, respectivamente, com “frutos” e “ali” (cf. Cândido de Figueiredo, op. cit., 1899). Quanto à forma “impelles”, da alínea f), ela corresponde à que, a este tempo, seria a usual (cf. Cândido de Figueiredo, 1899, que regista “impellir”). Deste modo, o que se torna estranho é o uso de “impeles”, na Edição Coimbra-1906. Se nada é possível garantir, a partir das lições d), e), f), no que diz respeito à identidade da mão que dactilografou este Caderno, podemos, no entanto, garantir que ela era bem versada na ortografia anterior a 1911 e que, portanto, a data do Caderno não será muito distante do ano 1906, o da 1ª edição do livro.

4– Gralhas (ou não)

a) fonte / fronte

No segundo poema, “Inscripção” (p. 7), na estrofe 3, verso 5, há uma discordância nas lições, entre “fronte” e “fonte”:

– no Caderno Ephemera-ECastro, lê-se: “Assim, longe de ti, na minha fonte

– na Edição 1906, lê-se: “Assim, longe de ti, na minha fronte”.

Trata-se, aparentemente, de uma gralha da mão do dactilógrafo do Caderno. Esta gralha, porém, repete-se mais adiante no poema “O Elmo” (pp. 25-27), estrofe 7, v. 1:

– no Caderno Ephemera-ECastro, lê-se: “Antigo protector da fonte nobre e ousada”

– na Edição 1906, lê-se “Antigo protector da fronte nobre e ousada”

A coincidência da repetição da gralha suscita uma dúvida razoável. Na verdade, o substantivo “fonte / -s” pode ser usado também com um sentido próximo de “fronte”, ainda que esse uso seja mais frequente no plural (“fontes”), portanto apontando a região anatómica das têmporas (MORAES, 1789: “parte da cabeça sobre as faces entre o cabelo e as sobrancelhas”). A lição “fonte”, no poema “Inscrição”, com o sentido de “têmpora”, em todo o caso, poderia justificar-se até por um tipo de rima obtida mediante a repetição de palavras homónimas, portanto com a mesma ortografia e significado diferente:

“Sequioso, hoje, ao curvar-me d’uns barrancos,

“Para beber em crystalina fonte,

“Que entre agriões canta e fulgura, a rir,

“Vi que já tenho dois cabellos brancos!

“Assim, longe de ti, na minha fonte

“As saudades começam a florir…”

Em “fonte”, com o sentido de “têmpora”, no verso 5 desta estrofe, ecoaria a forma “fonte”, que ocorrera já no verso 2 da mesma estrofe 3, com o sentido de “nascente de água”. Este processo, que não seria do desagrado de um poeta tão preocupado com a qualidade e originalidade da rima, como o próprio esclarece no Prefácio da 1ª Edição de Oaristos (1890), é aliás visível, neste mesmo livro, A Sombra do Quadrante, por exemplo, no poema “Violante Maria Luiza” (p. 49), onde por processo análogo, no caso, o uso de palavras homófonas, o poeta faz rimar “chama” (3ª p. s. pres. ind. do verbo “chamar”)  com “chamma” (substantivo f. s.); ou no poema “Quadrante” (p. 39), onde, também mediante o uso de palavras homófonas, a forma “eras” (2º p. s. pres. ind. do verbo “ser”) rima com “heras” (substantivo, f. pl.). Não é, portanto, de excluir no verso em causa a lição “fonte”, com o sentido de têmpora, mesmo no singular. Por outro lado, todas as últimas palavras desta estrofe 3 do poema “Inscripção”, de algum modo têm o som “r”, excepto, justamente “fonte”, do verso 2, sem qualquer som “r”. Ora, no caso de ficar a rimar com “fronte”, o esquema perderia de algum modo o seu equilíbrio.

No poema “Elmo”, não se põe a questão da rima. É mais provável o uso de “fronte”, mas não é impossível o uso de “fonte”.

A partir de certa altura (p. 30), porém, deixa de ocorrer este erro (ou variante) no Caderno Ephemera-ECastro: no poema “Sob os olhos de Deus” (p. 30), estrofe 4, v. 1: “Vossas frontes erguei aos céos doirados,” (p. 30), e no poema “Crepusculo”(pp. 31-36 ), estrofe 11,  v. 2: “Duma sacada surge a fronte esmaecida” (p. 33). Tal poderá até indiciar ou que, sendo erros os casos de ocorrência de “fonte” por “fronte”, a mão que transcreve o Caderno, a partir de certa altura é outra, ou que, numa hipótese remota, realmente as duas ocorrências anteriores de “fonte” no lugar de “fronte” não são erro e, uma vez que, em outros pontos, ocorre a palavra “fronte”, se trataria de uma emenda e uniformização da editora no momento da revisão. Ou até que tivesse havido uma mudança de ideia.

b) feixos / freixos

         No poema “O Quadrante”, estrofe 6, v. 2, há uma diferença nas lições. No Caderno Ephemera-ECastro, ocorre “feixos” em vez de “freixos”, o que parece ser uma gralha, até porque a palavra “feixo” nem existe.

– no Caderno Ephemera-ECastro, lê-se: “Junto de nós que não a vimos, sob os feixos,”

– na Edição Coimbra-1906, lê-se: “Junto de nós que não a vimos, sob os freixos,”

O que torna peculiar este aparente lapso é o facto de, muito embora não deixando de fazer sentido, todavia não ser tão significativa a lição “freixos” no enquadramento da estrofe em questão e no das mais próximas, a 5 e a 7. Nos dois versos subsequentes diz-se que “Cegos, tão cegos como o pobrezinho cego / que pisasse dobrão, julgando pisar seixos”. De facto, o que poderia estar aqui em causa seria o sentido de uma luminosidade excessiva que cega. Trata-se de cegos tão cegos que não vêem os dobrões que pisavam, mesmo tendo-os sob os pés. Do mesmo modo, será legítimo aventar, o sujeito e a amada não teriam visto a “ventura” (estrofe 6, v. 1: “A ventura passou modesta e com socego”), como quem ficasse ofuscado por excesso de luminosidade dourada que, de algum modo a estrofe anterior (a 5) sugere:

“E tu, loira amiga, essa creança fomos,

Destruimos nosso amor, malfadada boneca!

Fugindo dum pomar onde eram d’oiro os pomos,

Rilhámos, por castigo, urzes d’uma charneca”).

 Neste enquadramento, poderia fazer sentido o termo “feixe”, no sentido que por vezes lhe é dado, por aproximação com a física ou a óptica, de um feixe de luz. Note-se, aliás, que a estrofe subsequente, a 7, começa justamente por dizer “Mas tudo isso se extingue em neblinas”, e, com isto, aparentemente, tudo (a cegueira) se resolve, pois agora, mesmo com neblina, parece que “E o bom tempo adoçou as mais amargas dores” (estrofe 7, v. 2). A comparação da situação do sujeito e sua amada com a de uma cegueira por uma luz excessiva parece evidente. Ora, e há uma proximidade entre “feixe” e a forma inexistente “feixo” (sobretudo se, em simultâneo, nos vier ao espírito o substantivo “facho”…), mas que, em todo o caso, poderia de alguma maneira ter ocupado aquele lugar provisoriamente… Não é fácil explicar e entender isto (“feixo”, de facto, não existe), só mesmo com a noção de que a poesia, tendo alguma coisa de fluência, num certo ponto pode ter também muito de aturado labor, por vezes até à náusea, de experimentar desta forma ou daquela e daqueloutra… E a poesia de Eugénio de Castro é notoriamente uma poesia trabalhada. Não me parece inverosímil que “feixo” pudesse ter ocupado provisoriamente aquele lugar. De resto, não seria a primeira vez que entre as fontes de algum poeta se encontra alguma palavra inexistente. A título de exemplo, ocorre-me a forma “tíbida” (do verso “Tímida ainda, que fresca”)[3], no poema “Provincianas” de Cesário Verde, na edição de Silva Pinto.

  1. Palavras diferentes

a) ao/no

No poema “Crepusculo”, estrofe 9, v. 3, há uma discrepância entre a lição “ao”, no Caderno Ephemera-ECastro e “no”, na Edição Coimbra-1906.

– no Caderno Ephemera-ECastro, lê-se: “Eil-a á janella a olhar, a olhar ao nevoeiro”

– na Edição Coimbra-1906, lê-se: “Eil-a á janella a olhar, a olhar no nevoeiro”

Trata-se de uma discrepância não destituída de interesse, pois nenhuma das lições, “ao” e “no” corresponde, com propriedade, à construção exigida pelo verbo “olhar” neste enquadramento e sentido específico, onde a preposição esperada seria “para”. Ou então, eventualmente, o verbo poderia aqui ser usado sem preposição. A discrepância sugere a possível ocorrência prévia de uma vacilação na opção a tomar, já que a preposição que ali caberia com propriedade, a preposição “para”, não se enquadra naquele lugar de modo a formar o verso alexandrino, que assim ficaria com uma sílaba a mais.

 b) alguns casos de discrepância entre palavras que aparentam ser devidos a situações de lapso do dactilógrafo do Caderno.

. noivados (Caderno) / noivos (1906) (“Sob os Olhos de Deus”, estrofe 4, v. 3):

– no Caderno Ephemera-ECastro), lê-se “Sob os olhos de Deus, caminhem, noivados!”

– na Edição Coimbra-1906, lê-se “Sob os olhos de Deus, caminhem, noivos!”;

 . dedos (Caderno) / cabelos (1906) (“Crepusculo”, estrofe 25, v. 4):

– no Caderno Ephemera-ECastro, lê-se “Entre os dedos d’oiro uns dois de prata viu”

– na Edição Coimbra-1906, lê-se “Entre os cabelos d’oiro uns dois de prata viu”;

. eterna (Caderno) / terna (1906) (“O Quadrante”, estrofe 1, v. 4):

– no Caderno Ephemera-ECastro, lê-se “De amar com singeleza e com eterna humildade”

– na Edição Coimbra-1906, lê-se “De amar com singeleza e com terna humildade”.

Estas três lições diferentes do Caderno Ephemera-ECastro têm um aspecto em comum: nenhuma delas se encaixa no verso pretendido (heróico ou alexandrino), que fica com uma sílaba a mais (“noivados”, de “Sob os olhos de Deus, de verso heróico; “eterna” de “O Quadrante”, de verso alexandrino,) ou a menos (“dedos”, de “Crespusculo”, de verso alexandrino) com cada uma daquelas três lições do Caderno. Isto já para não falar do acento. Nesta conformidade, o que parece mais provável é tratar-se de um engano do dactilógrafo.

Para o caso da lição “noivados” em vez de “noivos” isso parece bem provável, uma vez que, naquele contexto, seria muito improvável que ao poeta não ocorresse de imediato o substantivo “noivos”; por outro lado, a lição “noivados”, que ali é imediatamente evidente não fazer muito sentido, parece mesmo ser um engano do dactilógrafo que, por uma pequena distracção, o terá feito rimar com “doirados”, no primeiro verso da mesma estrofe 4 (o segundo terceto do soneto):

    “Tristes paes sem ventura, que, abraçados,

     Do cemitério percorreis os trilhos

Todos cheirosos a cypreste(s) e a goivos,

Vossas frontes erguei aos céos doirados,

Onde agora talvez os vossos filhos,

Sob os olhos de Deus, caminhem noivados

Em vez disso, naquele lugar do verso, havia que atender ao substantivo “goivos” do terceiro verso do terceto imediatamente anterior, com o qual havia de rimar.

Já não diria o mesmo relativamente à lição “eterna”, do Caderno, na medida em que haveria um sentido que sustentaria a plausibilidade de ela ter antecedido a lição “terna” (que efectivamente cabe no verso alexandrino), podendo até dar-se o caso de o poeta nem se ter apercebido logo de que, com o substantivo “eterna” havia uma sílaba a mais no verso. Na verdade, todo o poema aponta para como tudo passa, como as horas são implacáveis e há uma madrasta que as vigia a ver “se alguma delas se demora a apanhar borboletas ou lírios”[4]. Aliás, logo nesta primeira estrofe, esta lição “eterna” poderia formar um efeito de contraste com o “instante” (v. 1) que é afinal a entrada nesse jardim para onde o sujeito convida o tu a entrar com ele: “Porque não entras tu no meu jardim um instante? / Nunca vi tarde assim, de tanta suavidade, / E na minh’alma chora uma sêde abrasante / de amar com singelesa e com eterna humildade”. A lição “eterna” permitiria antecipar a expressão de um desejo implícito que se estende ao longo de várias estrofes do poema nas quais vai desfilando um certo lamento pela passagem de tudo, o que se subentende do desejo de manter eterna a situação de uma “ventura” (estrofe 6, v. 1) que para eles passou e a que com este convite inicial o sujeito pretende regressar. A lição “eterna” do Caderno Ephemera-ECastro poderá assim, remotamente, indiciar a possibilidade de um estádio anterior deste poema, uma indecisão ou até que o poeta nem se apercebeu logo de que com o substantivo “eterna” o verso ficava com uma sílaba a mais. Nada disto é estranho na feitura de poemas. Por outro lado, ela também não invalida que a lição “noivados” seja de facto um engano, pois também o próprio poeta pode incorrer naquele tipo de engano, ao transcrever os seus poemas (aliás, não seria prudente aventar-se contra esta hipótese que os poetas sabem todos os seus poemas de cor…, porque isso não será um argumento assim tão seguro.

    Quanto à lição “dedos”, no poema “Crepsculo”, entende-se o lapso de quem transcreve e em vez de “cabelos” escreve “dedos”, pois é fácil imaginar, pelo enquadramento do poema, a imagem de uma desgraçada (sobre a qual versa o poema) que justamente entre os seus dedos vê, ao espelho ao pentear-se dois cabelos brancos. Tal engano, como aliás o da lição “noivados” (em “Sob os Olhos de Deus), não seria aliás impossível acontecer ao próprio poeta ao transcrever os seus poemas. Mas não é impossível também que a lição “dedos” denuncie a existência de um estádio prévio do verso que, não necessariamente com esta configuração exacta, tenha incluído o substantivo “dedos, porque justamente a imagem desta pobre é a que se vê pela sequência dos dois versos: “E hoje a triste, ao pentear a longa, cabeleira / Entre os dedos d’oiro  uns dois de prata viu”. A seguir ao verso anterior não é descabida a sequência imediata “Entre os dedos”, que quase naturalmente ocorre a quem lê, pois esta figura feminina está ao espelho a pentear-se.

 

  1. Gralhas

a) Velho/Vello

No poema “Olhando as Nuvens”, estrofe 8, v. 2, há uma discrepância de lições entre “Velho” e “Vello”.

– no Caderno Ephemera-ECastro, lê-se “Buscar o Velho de Oiro os Argonautas vão…”

–  na Edição Coimbra-1906, lê-se “Buscar o Vello de oiro os Argonautas vão…”

A lição “Velho”, no Caderno Ephemera-ECastro, é obviamente uma gralha. Esta gralha tem a particularidade de poder denunciar a ignorância do dactilógrafo porventura não muito versado em mitologia grega. Em todo o caso, não é impossível tratar-se de um lapso que, coincidentemente, acabou por fazer passar por ignorante o dactilógrafo deste Caderno, que, em todo o caso, não seria completamente ignorante pois parece fluente na norma ortográfica que terá aprendido na escola, a anterior a 1911.

b) Outras gralhas (sem significado): espeso / esposo (“O Jazigo”, estrofe 1, v. 2); rendia / rendida (“O Jazigo”, estrofe 2, v. 1); arrebatendo / arrebatando (“Olhando as Nuvens”, estrofe 7, v. 4).

Como estas, há algumas outras (poucas) gralhas do mesmo tipo, que não são especialmente significativas no que toca a uma possível indicação da origem do caderno Ephemera-ECastro, razão pela qual não ficam aqui discriminadas.

 c) algumas gralhas de acento (ausente ou a mais) são pouco significativas, uma vez que a sua ocorrência é vulgar em qualquer dactilógrafo dos poemas, seja ele o seu autor ou não.

[1] Por esta altura Eugénio de Castro e outros poetas portugueses, como Guerra Junqueiro e Teixeira de Pascoaes, tinham boa presença nos catálogos de editoras espanholas. Não menos importante na presença de Eugénio de Castro em Espanha será a influência de Miguel de Unamuno (a quem é dedicado A sombra do quadrante) que, com não pouco entusiasmo, se lhe refere em 1907, portanto até em data próxima da publicação da A sombra do quadrante. Cf. Miguel de Unamuno, Por tierras de Portugal y de España, Madrid, Alianza Editorial, 2006, pp. 7-14. A este livro refere-se como uma “colección de exquisitas poesías líricas”, dizendo também que “en este último libro parece continuar la vena de su inspiración continuamente portuguesa” (p. 12).

[2] Catulo, Carmen I, 3-4: […] namque tu solebas / meas esse aliquid putare nugas,

[3] Na edição do livro de Cesário Verde da responsabilidade de Silva Pinto, a lição daquele verso é “Tíbida ainda que fresca!”. Cabral do Nascimento propôs a lição “Tímida”, seguida por Joel Serrão, in Obra Completa de Cesário Verde, organização, prefácio e notas, Lisboa, Livros Horizonte, 19834, p. 130, nota.

[4] “Quadrante”, estrofe 17: “Guardadora feroz das Horas, que, singelas, / Mal nascem morrem logo, em candidos delirios, / Qual madrasta as vigia, a ver se alguma d’ellas / Se demora a apanhar borboletas ou lirios”. Outros pontos do poema mostram o que pretendo dizer.

 

(Nota: alguma da formatação do texto perde-se na transcrição para o formato de blogue. A versão PDF está conforme ao original: EPHEMERA, Eugénio de Castro, caderno dactilografado – A sombra do Quadrante (2)

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