Entre o trabalho notável que Joaquim Matos tem feito no Acervo Sousa e Castro, conta-se a inventariação e transcrição dos documentos mais relevantes da Comissão de Extinção da PIDE/DGS, em particular a correspondência relativa a 374 agentes e informadores da PIDE/DGS presos depois do 25 de Abril. Alguma dessa correspondência tem origem em, ou é relativa a, alguns dos mais conhecidos membros da polícia política, a começar pelo seu director à data do 25 de Abril, Major Silva Pais, e a pides como Fernando Gouveia ou Adelino Tinoco. Alguma dessa correspondência vai ser publicada pelo ARQUIVO EPHEMERA.
Agradeço a Irene Pimentel a nota original que fez à carta de Fernando Gouveia, sobre o qual escreveu uma biografia.
IRENE PIMENTEL – NOTA ORIGINAL SOBRE A CARTA DE FERNANDO GOUVEIA
Esta carta escrita, no Forte de Caxias, em 30 de Março de 1976, pelo ex-inspector adjunto da DGS, Fernando Gouveia, quando já estava em prisão preventiva havia 23 meses – ficaria nessa condição mais 5 meses -, dirigida ao Capitão Rodrigo Sousa e Castro, que tutelava, enquanto membro do Conselho da Revolução, desde Dezembro de 1975, o Serviço de Coordenação da Extinção da PIDE/DGS e LP, acrescenta dados importantes à biografia daquele elemento da polícia política da Ditadura portuguesa. Fernando Gouveia será, com António Rosa Casaco, um dos elementos da PVDE/PIDE/DGS de que mais se sabe. Efectivamente, deixou um primeiro volume das suas memórias, publicado em 1979, Memórias de Um Inspector da P.I.D.E. A Organização Clandestina do P.C.P., onde faz um ajuste de contas com o PCP e com a própria polícia onde trabalhou, ao afirmar que esta era «absolutamente balofa no interior». Prometeu continuar as suas memórias, num segundo volume, que nunca chegou a surgir nos escaparates, embora o primeiro tenha sido muito baseado em documentação do Gabinete Técnico, que ele próprio dirigiu, desde a sua criação em 1958, e que fez dele provavelmente o elemento da polícia política que melhor conhecia o funcionamento do PCP.
Apesar de se encontrar «em convalescença de grave doença», em 25 de Abril de 1974, o então inspector-adjunto Fernando Araújo Gouveia deslocou-se à sede da DGS, em Lisboa, mal soube da notícia do golpe militar do Movimento das Forças Armadas (MFA). Aí se manteve até à madrugada do dia 27, «quando respeitou a ordem de recolher a casa» dada pelo general Spínola a todos os elementos da DGS, a começar pelo director, major Fernando da Silva Pais. Dois dias depois, Fernando Gouveia rendeu-se «voluntariamente», na Cova da Moura, ao (MFA), a «fim de compartilhar da sorte dos seus camaradas detidos». Permaneceria detido preventivamente em Caxias e Peniche, durante 28 meses, às ordens da Comissão de Coordenação dos Serviços Extinção da PIDE/DGS, sujeito a um processo, por pertencer a uma «organização de malfeitores», e, nessa qualidade, bem como no exercício das suas funções, ter empregue «violências sobre presos políticos». Negou, afirmando mesmo ter sempre sido «correcto e humano», embora não estranhasse as acusações de teor contrário formuladas por muitos elementos do Partido Comunista Português (PCP), pois o temiam «pela sua persistência e métodos».
Nesta carta, Fernando Gouveia conta um curioso episódio de um pretenso provocador introduzido na Penitenciária entre os 718 elementos da DGS ali detidos, procurando insubordiná-los contra as Forças Armadas, não tivesse Fernando Gouveia neutralizado a provocação. O que é interessante é que ele próprio utilizou precisamente essa táctica de introduzir um provocador na cela de um elemento do PCP, em 1945. Referindo a revolta de elementos da DGS presos na Penitenciária, em Agosto de 1974, Gouveia assegura a manutenção da disciplina dos “seus” homens e aproveita para lembrar a colaboração sempre levada a cabo com as Forças Armadas pela polícia política. Razão, aliás, que justificaria a atitude passiva dessa polícia face ao «25 de Abril», cujos elementos se deixaram prender. E não seria suficiente o «caso Delgado», para manchar a honra de toda uma «Corporação».
Mas o verdadeiro motivo da carta é, mais uma vez, Fernando Gouveia aproveitar, com a vaidade que o caracterizava, para justificar-se de ser perseguido pelo PCP, cujo funcionamento havia descoberto «em 1952». Gouveia tinha sido, desde os anos 30 e, sobretudo, 40, um “especialista do PCP”, mas provavelmente se está aqui a referir o caso de «Mário Mesquita», um funcionário do PCP que trairia esse partido, relatando o seu modo de actuação. Já agora, Gouveia comete um pequeno erro ao referir que a Rádio Portugal Livre, emitiria da Argélia, quando aquela emissora do PCP estava localizada em Bucareste, e na capital argelina a emissora, da FPLN, se chamava Rádio Voz da Liberdade.
Fernando Gouveia viria a ser libertado em Agosto de 1976, sem pagar a caução de 40.000$00, pois conseguiu provar que não se tinha chegado a reformar e vivia em péssimas condições económicas. Não chegaria a ir a julgamento pela sua actuação ao longo de anos na polícia política de Salazar e Caetano e acabaria mesmo por receber uma pensão de reforma. Morreria em dia 4 de Outubro de 1990, aos 87 anos.
(Irene Pimentel)
CARTA DO INSPECTOR ADJUNTO FERNANDO ARAÚJO GOUVEIA AO CAPITÃO SOUSA E CASTRO (30 DE MARÇO DE 1976)
(12 páginas manuscritas)
“Excelentíssimo Senhor Capitão Sousa e Castro -Mui ilustre membro do Conselho da Revolução
Fernando de Sousa Araújo Gouveia, ex-membro do Conselho Técnico Superior da extinta Direcção Geral de Segurança, com a categoria de Inspector-Adjunto, mui respeitosamente pede licença a Vossa Excelência para lhe descrever um pequeno episódio antes de expor o assunto que o leva a dirigir-lhe esta exposição, como esclarecimento de uma posição ignorada pela grande maioria de todos os Senhores dos nossos destinos.
Assim, durante estes 23 meses de prisão sem culpa formada, estive no ano findo, de 18 de Março a 28 de Maio do mesmo ano, na Cadeia Penitenciária de Lisboa, juntamente com mais 718 detidos, com uma mistura de funcionários de todas as categorias da extinta Direcção Geral de Segurança, com os chamados informadores ou colaboradores da mesma.
A certa altura, dá ali entrada como detido, um indivíduo civil, novo e bem falante, já anteriormente detido no Forte Militar de Caxias, onde deve ter entrado em meados de 1974 e solto pouco depois, tendo gozado neste intervalo, 8 meses de liberdade, pouco mais ou menos.
As razões destas entradas e saídas nunca foram por nós conhecidas, sendo certo que no isolamento inicial em Caxias e através da janela da sua cela situada nas traseiras, dizia para os dois lados, ter sido informador da nossa Corporação.
Após a sua entrada na Cadeia Penitenciária, procurou insinuar-se entre alguns funcionários superiores da extinta D.G.S. – cujos nomes havia conhecido através das celas de Caxias – apresentando-se-lhes como sendo o fulano de tal que esteve na cela ao lado e assim, conseguiu captar algumas simpatias.
Passados alguns dias, por meio de conversas que encaminhava em diversas direcções, tenta conhecer alguns pormenores da vida interna da nossa Corporação, o que nos coloca de sobreaviso, embora nada de escabroso houvesse para ocultar.
Confiado na influência da sua verborreia e julgando que nos havia conquistado, começa a interessar-se de cada um de nós e sem contudo, manifestar interesse pela sua, tenta manipular-nos, sugerindo que fizéssemos exposições da nossa situação e dos nossos familiares, para serem entregues na Presidência da República, Conselho da Revolução e Conselho de Ministros, e, ainda, nas Embaixadas estrangeiras, com excepção das “tais” de Leste, o mesmo se devemos fazer em relação aos jornalistas-correspondentes nos jornais estrangeiros com as mesmas excepções.
Compreendidas as suas intenções, pouco a pouco, fomos pondo de lado esse individuo, sem qualquer atitude hostilizante.
Passados alguns dias, no recreio em comum – devo esclarecer que a vida naquela Penitenciária era toda feita em comum, havendo por isso, maior espaço de movimentação que permitia passarem-se dias sem que uns tantos vissem outros, o mesmo já não sucedia no recreio, onde tínhamos possibilidade de ver todos os que ali vinham, por ser menor o seu espaço – vou surpreender esse indivíduo perorando no meio de alguns agentes da nossa Corporação.
Aproximei-me e ouvi perfeitamente ele estar a dizer-lhes: … a vossa passividade só pode significar um complexo de culpa…
Depreendi imediatamente que ele estava tentando instrumentalizar aqueles rapazes, levando-os a contar qualquer acto ou insubordinação, semelhante ao ocorrido ali em Agosto de 1974 – também provocado por influência exterior – o que só viria a agravar a sua situação e permitir que lançassem sobre eles o labéu de desordeiros e de amotinados como confirmação do mau ambiente já criado e muito desenvolvido por uma venenosa propaganda bem orquestrada pelos meios de comunicação social afectos aos comunistas.
Não me foi possível dominar-me e colocando-me bem na sua frente, disse-lhe de forma a ser bem ouvido por todos quantos andavam no recreio, que o pessoal da D.G.S., não tinha nada que sofrer de qualquer complexo de culpa, por ter a consciência limpa e descansada; que a sua passividade apenas significava ser disciplinado e respeitador das Forças Armadas, com quem sempre colaborou, tanto no Continente como no Ultramar; que se esse pessoal não fosse honesto e bem comportado, nunca poderia ingressar no quadro da Polícia, pela exigência do registo criminal limpo e bom comportamento militar aquando do seu alistamento, além da abonação de dois oficiais do Exército que por escrito, afiançavam o seu bom comportamento tanto moral como político, nas unidades Militares em que prestavam serviço e onde muitas vezes era recrutado, ainda no efectivo.
Esse indivíduo teve então o arrojo de, no final deste meu exaltado esclarecimento, dizer: “Pois olhe, não é isso que dizem lá fora!”.
Retorqui-lhe que fosse dizer a quem lhe pagava, que o pessoal da D.G.S. era assim e que aguardaria calmamente a justiça que um dia lhe seria feita e, acto contínuo, todos lhe virámos as costas.
A citação deste incidente, vem mesmo a propósito da calma que todos temos tido, pois, não só durante o pouco tempo que ali permaneci, como também nos 5 meses que a seguir passei no Forte Militar de Peniche e nos últimos 5 meses aqui em Caxias, tive sempre oportunidade de verificar o clima de disciplina e da confiança nas Forças Armadas, todos aguardando uma justiça que vem tardando, sendo certo que a fuga de Alcoentre não invalida esta opinião, dado que essa fuga não significa mais do que, a impaciência respeitosa dos mais novos e o desejo de irem angariar no estrangeiro, o trabalho e o pão, para eles e para os seus familiares, que lhes era negado cá no País.
No entanto, pensando bem, é natural que a maioria do nosso Povo, tenha estranhado a facilidade com que se deixou prender uma Corporação Policial inteira, que tinha a seu cargo exclusivo, dado por lei, a fiscalização e o controlo de todas as fronteiras terrestres, marítimas e aéreas, tanto na entrada como na saída de estrangeiros e nacionais, assim como sobre os primeiros, quando residentes permanentes ou temporários, ou ainda como turistas, além de ser membro da Interpol-Organização Internacional de Polícias Criminais – de que foi Presidente efectivo durante um triénio, o falecido Capitão Agostinho Lourenço, e, cujos serviços aqui em Portugal estavam instalados na Sede da D.G.S.
Ainda por Lei, competia à nossa Corporação, a investigação e a instrução dos processos pela prática de crimes contra a Segurança interna e externa da Nação, com a remessa dos processos-crime aos Tribunais competentes, o mesmo sucedendo aos crimes de engajamento e emigração clandestina.
E é natural também que, assim como aquele individuo provocador admitia, o nosso Povo admita igualmente que a passividade de mais de um milhar de funcionários policiais, não represente mais do que o reconhecimento da sua culpabilidade na prática de actos que sempre lhe foram atribuídos, mas nunca provados, numa campanha bem orquestrada e melhor desenvolvida por aqueles que mais sentiam a acção da Polícia na frustração dos seus maquiavélicos intentos.
Admitir tal, é não conhecer o espírito de disciplina, honestidade e do respeito pelo nosso Povo – por cuja segurança e tranquilidade sempre zelou – que sempre reinou na Corporação e sobretudo, a confiança que sempre depositou nas Forças Armadas, aliás retribuída, com quem sempre colaborou ao longo dos 46 anos da sua existência – a inicial, Polícia de Informação, foi criada em 17 de Março de 1928, pelo Decreto nº 15.195 – e sempre dirigida por oficiais do exército.
E foi sem dúvida esse espírito de disciplina e de confiança nas Forças Armadas, que levou todos os seus funcionários a obedecer à ordem, ainda que de um oficial do Exército – O Director-geral, Major de Engenharia, Silva Pais – de cada um aguardar nos seus lugares, o desenrolar dos acontecimentos naquele dia 25 de Abril de 1974, dado que nenhum admitia a ideia de uma traição.
É assim, que ao longo da fronteira terrestre, todos os funcionários se mantiveram firmes nos postos respectivos, resistindo a todos os convites insistentes, que foram feitos do outro lado da fronteira para que atravessassem a linha divisória e se pusessem a coberto de qualquer surpresa.
O mesmo sucedeu com o pessoal dos postos marítimos e aéreos, onde lhe teria sido fácil refugiar-se em qualquer barco ou avião estrangeiro. No entanto, todos se deixaram prender sem esboçar qualquer resistência.
Mas há mais. O próprio Director-Geral foi mandado recolher à sua residência pelas Forças de ocupação da Sede da D.G.S. na noite de 26 para 27 de Abril de 1974, e ali permaneceu 3 dias, ainda antes de ser preso, fiel ao mencionado espírito de disciplina e de confiança nas Forças Armadas de que ainda fazia parte, quando lhe teria sido fácil, durante este espaço de tempo, refugiar-se em qualquer Embaixada estrangeira onde, em algumas, contava muitos amigos.
O mesmo sucedeu com o Director de Serviços, Manuel da Silva Clara, ex-oficial miliciano, mandado para casa nessa mesma noite de 26 para 27, e ali se conservou durante 8 dias à espera que o fossem prender, como de facto sucedeu.
Mas comigo ocorreu também ter sido mandado para minha casa ainda na mesma noite, por me encontrar em recuperação de uma grave doença que me forçou a permanecer internado na Clínica da Cruz Vermelha durante 8 meses e meio, entre a vida e a morte, e, igualmente, não tentei refugiar-me depois em qualquer parte.
Com a consciência bem tranquila, na manhã do dia 29 desse mesmo mês de Abril, fiz a minha apresentação voluntária na Cova da Moura, dando entrada aqui, em Caxias, ao fim do mesmo dia.
Nós, os verdadeiros homens da D.G.S., fomos sempre assim.
E não é o “Caso Delgado” – acto que teria sido combinado por um reduzidíssimo grupo isolado, sem o mínimo conhecimento dos restantes, e mesmo assim, ainda não devidamente esclarecido – suficiente para manchar o bom nome e o prestígio da nossa Corporação, com as provas dadas do seu espírito de luta e de sacrifício em qualquer parte do território continental e ultramarino, bem reconhecido por todo o Povo português trabalhador e honesto e até pelos Altos Comandos das Forças Armadas que, continuamente o consagravam em Ordens de Serviço e Ofícios, e ainda em Boletins Oficiais e Diário do Governo, havendo bastantes distinguidos com louvores e condecorações nacionais e estrangeiras, o que tanto nos honrava.
Mencionei o “Caso Delgado”, por me recordar que em 19 de Outubro de 1921, alguns civis e marinheiros, sob o comando do Guarda-Marinha Benjamim, procedeu à captura de uns tantos vultos da República, entre os quais se contava o seu Fundador, Almirante Machado Santos, o Presidente do Conselho de Ministros em exercício, Dr. António Granjo, o Comandante Carlos da Maia, Ministro da Marinha com o Presidente Sidónio Pais e outros, todos conduzidos numa camioneta que ficou conhecida por “camioneta fantasma”, para uma instalação do velho Arsenal da Marinha e ali, foram simplesmente fuzilados a sangue frio, como aliás, o ao tempo bem conceituado revolucionário, Capitão de Engenharia, Cunha Leal, teve oportunidade de assistir, embora forçado, como ele declarou mais tarde no Parlamento, onde exibiu o colarinho da sua camisa, tinto de sangue, por uma bala lhe ter roçado o pescoço.
Não creio que por estes factos, a nossa Marinha de Guerra tivesse que ser dissolvida e presos todos os seus componentes, mas sei que esses factos em nada afectaram o seu grande prestígio e glória, por os mesmos terem sido praticados por uns tantos elementos seus que, em Tribunal competente, prestaram as devidas contas.
Passamos agora ao assunto concreto do meu caso, peço licença a Vossa Excelência, para expor o seguinte:
Sempre tive como principal objectivo da minha vida policial, contribuir para evitar ao Povo português o doloroso sofrimento de assistir ao espectáculo do caos e da degradação que o período gonçalvista teve oportunidade de lhe proporcionar e do qual, ainda, e durante muito tempo terá de sofrer os efeitos.
Tudo sacrifiquei – saúde, horas regulares de descanso e de alimentação, convívio familiar e férias – numa luta insana e pertinaz, contra a organização clandestina do chamado Partido Comunista Português – o seu funcionamento foi por mim descoberto em 1952 – cuja finalidade era a agitação e a mobilização das massas, tentando provocar por meio de greves e de sabotagens, a insegurança e a intranquilidade pública, para, depois, por meio de infiltrações dos seus membros e simpatizantes em todos os lugares-chave, estabelecer o clima apropriado ao desencadeamento da insurreição armada para a tomada do poder.
Para accionar a sua máquina clandestina, dispunha de um forte quadro de “funcionários” – indivíduos que abandonavam as suas profissões, se é que alguma vez as tiveram – que viviam na clandestinidade com falsas identidades, dedicando exclusivamente ao desenvolvimento das tarefas partidárias e de agitação nos sectores em que dividiram o País, e que lhes eram distribuídas pelos membros do seu Comité Central, igualmente “funcionários”, vivendo nas mesmas condições clandestinas ou no estrangeiro.
Como não trabalhavam – alguns mesmos nunca trabalharam – viviam todos à custa dos Fundos da organização, de início com produtos das quotizações e venda da sua imprensa clandestina e depois já com o poderoso auxilio material de Moscovo.
O meu crime é ter assimilado os métodos e tácticas dessa organização clandestina e de ter estudado e proposto um plano que foi aprovado superiormente, de luta contra a sua actividade, procurando neutralizar a sua nefasta e perigosa infiltração no nosso País.
Essa luta foi sempre desenvolvida com cérebro e humanidade e cuja eficiência era também reconhecida pelos próprios membros do Comité Central, quando presos.
E é tão certo isto, que logo a seguir a 25 de Abril de 1974, alguns desses membros do Comité Central, estiveram aqui, neste Forte Militar de Caxias, armados em polícias, a interrogar detidos da D.G.S., e nenhum teve coragem de me fazerem comparecer perante eles, para me formularem de frente e de viva voz, as acusações que me foram sempre feitas através de uma campanha superiormente orquestrada e dirigida por meio da sua imprensa clandestina e mesmo estrangeira e até na Rádio Moscovo, Rádio Praga e Rádio Portugal Livre, na Argélia, com a finalidade de criar e desenvolver um amplo movimento de opinião que forçasse o Governo a demitir-me, tentando assim, paralisar uma actividade que dificultava, sem dúvida, a realização dos seus objectivos subversivos.
Excelência
Se me permite, eu atrevo-me a fazer uma pergunta:
Estarei preso à ordem ou por ordem do tal chamado Partido Comunista Português, que tão boas provas de portuguesismo tem dado ao País?
Eu que aos 16 anos e nove meses de idade, jurei pela minha honra, fidelidade à nossa Bandeira e à nossa Pátria, não regateando a vida, caso fosse preciso, quando, como voluntário, passei a pronto da instrução militar, incorporado numa Unidade do nosso Exército e que dediquei os melhores anos da minha vida, expondo-a constantemente, em luta contra uma organização subversiva que sempre usou como sua bandeira, a bandeira de uma forte e poderosa Nação comunista, opressora de milhões de indivíduos, incluindo os símbolos da estrela, foice e martelo, continuo preso sem culpa formada e sem que até à presente data me tenha sido formulada qualquer acusação concreta, de ter cometido violências ou actos de abuso de autoridade que na imaginação dos programadores da já citada campanha, devia ter praticado, continuo preso, repito, enquanto alguns que foram nossos presos, julgados e condenados em Tribunal competente, andam à solta, em posições de destaque, inclusive até, como membros dos vários Governos, sem excepção do VI.
E devo continuar a perguntar se é por isso que se passam meses e meses, sem ver sequer o ou os instrutores do meu processo, já iniciado há pouco mais ou menos, um ano, primeiro por um Oficial do Exército e depois continuado por outro que a certa altura o interrompeu e que há mais de 5 meses não voltou a aparecer, os quais se limitaram a inquirir o que fiz desde a data do meu alistamento na Polícia de Informação do Ministério do Interior – 1 de Junho de 1929 – até, segundo creio, à data da minha detenção – 20 de Abril de 1974 – ou seja, o que fiz como Chefe de Brigada, ou melhor, primeiro como Agente e depois como Chefe de Brigada, pois ainda não passamos desta última categoria, faltando ainda inquirir o que teria feito como Subinspector, Inspector, Inspector-adjunto e Técnico Superior, naturalmente à espera de alguma contradição que possa determinar culpa, já que nada de concreto me foi ainda apresentado.
Ora eu devo informar Vossa Excelência que de facto, a minha subida da corda a pulso, não tem podres nem nada de que me envergonhar e por tal, franca e lealmente tudo tenho exposto e tenho pena de não terminar esse processo assim iniciado, pois penso que estarei condenado a prisão perpétua, sem culpa formada, naturalmente pelo muito que conheço acerca desses senhores, tão vulneráveis como outros mortais, mas com certas agravantes.
Como já tive ocasião de expor a Vossa Excelência, em 5 de Janeiro p.p., nada possuo de meu e estou na perspectiva de uma terceira idade de miséria, como paga do sacrifício de uma vida inteira, dedicada ao serviço da Nação e na defesa dos mais sãos princípios da Ordem e da Paz e o Bem estar do nosso Povo, precisamente os sãos princípios porque luta o Conselho da Revolução de que Vossa Excelência é mui Ilustre membro.
Com a maior consideração e respeito, de Vossa Excelência, atentamente
Fernando de Sousa Araújo Gouveia
– Forte Militar de Caxias, em 30 de Março de 1976 – Quarto 20 – 3º piso – esqº”
Seja o primeiro a comentar