A MEMÓRIA FÍSICA PERDIDA DAS CAMPANHAS (PÚBLICO, 5 DE OUTUBRO DE 2013

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Na pequena freguesia em que vivo, hoje incorporada numa destas “uniões de freguesias” em que o poder político deixou tudo de complicado para o pós-eleições, concorreram três listas: uma independente, outra da coligação PSD-CDS e outra da CDU. O PS não concorreu, mas fez um panfleto local apelando ao voto nas listas do partido na câmara e na assembleia, e o mesmo ocorreu com um movimento independente a nível concelhio e o Bloco de Esquerda. No seu conjunto, estas listas produziram a nível de freguesia cinco cartazes diferentes, entre outdoors e cartazes anunciando iniciativas de campanha, e cerca de 15 documentos diferentes, incluindo programas locais, apelos ao voto, convocatórias de reuniões. No seu conjunto mais de 20 itens diferentes para 744 eleitores.

A nível nacional, mais de 12.000 candidaturas distintas concorreram a cerca de 3100 freguesias e mais de 300 concelhos. Nas zonas urbanas, e não só em Lisboa e Porto, as campanhas a nível de freguesia produziram centenas de itens diferentes, outdoors, cartazes, panfletos, “brindes”, autocolantes, etc. Por exemplo, a campanha de um movimento independente na freguesia de Alcântara em Lisboa, o MOVE, produziu cerca de 15 cartazes e faixas diferentes com reivindicações locais, e cerca de 20 panfletos, convocatórias, programas, listas e apresentação de listas, para além de alguns jogos e construções de papel, de difícil classificação. O mesmo aconteceu com o Grupo de Cidadãos Parque das Nações igualmente com elevado número de cartazes e outdoors.

Outros movimentos independentes em Lisboa a nível das freguesias, como o Mais Estrela ou o Mais Penha e S. João (MAPES), produziram muito menos materiais, mas usaram métodos já abandonados pelas organizações com mais recursos, como fotocópias agrafadas em árvores (como fez o Partido Trabalhista), faixas rudimentares ou pichagens no chão e em muros. A estes “movimentos” devem-se acrescentar candidaturas pessoais como a de Idalina Flora às Avenidas Novas, que mesmo assim produziu pelo menos um cartaz e um panfleto.

A dimensão desta propaganda contrasta com a das listas dos grandes partidos e coligações nas freguesias que seguiram uma linha comum de propaganda, como aconteceu com o PS e a coligação PSD-CDS-MPT, mas, dependendo dos meios e das expectativas existentes em cada freguesia, utilizaram recursos muito mais significativos. Por exemplo, na freguesia de Arroios, a coligação PSD-CDS-MPT fez cerca de 20 cartazes e outdoors diferentes, para além de faixas de lona nas sedes, pelo menos 15 panfletos distintos, um jornal de campanha, para além de “brindes” (fitas, por exemplo) e decoração de carros de campanha. O mesmo aconteceu na mesma freguesia com a Plataforma de Cidadania (PPM-PND e PPV), que tinha uma densa cobertura de cartazes rivalizando com os grandes partidos. A tudo isto há que somar em Lisboa o PAN, o MRPP e campanhas muito mais modestas do PTP e do PNR. Multipliquem agora a maioria destas campanhas por 24 freguesias, para ter uma dimensão da quantidade de itens diferentes produzidas para a propaganda só em Lisboa.

Depois, some-se o Porto, ou Oeiras, em que a densidade de propaganda local foi enorme e multipliquem de novo pelas freguesias. Só em outdoors gigantes, dos maiores existentes, a campanha de Moita Flores produziu pelo menos dez, entre as aventuras do próprio candidato às do “tio Carlos”, da “Patrícia”, do “Pedro” e da “Catarina”. Em Cascais, o candidato de PS tinha toda a panóplia de “brindes”, em cores diferentes, T-shirts, canetas, caixas de medicamentos, etc., etc. Multipliquem também por freguesias, agora bastante menos, mas isso não implica que muitos candidatos locais não façam papéis e cartazes para cada uma das antigas unidades administrativas agora agrupadas, como fez o PSD em Vila Nova de Gaia, ou a CDU no Barreiro.

Os movimentos de independentes com mais importância não se distinguem dos principais partidos na abundância e diversidade de propaganda. No Porto, Rui Moreira; em Gaia, Guilherme Aguiar; em Matosinhos, Guilherme Pinto; em Oeiras, Paulo Vistas, todos tiveram campanhas idênticas aos partidos contra os quais concorriam e a desigualdade só é manifesta com a cobertura televisiva que, depois da decisão da CNE, beneficiou os partidos parlamentares.

Escusado será dizer que se gastaram muitos milhões de euros em propaganda, alguma da qual é manifestamente impossível ter sido feita dentro dos limites legais. Contenção evidente só na maioria das campanhas da CDU, visto que mesmo o BE tinha pelo menos um cartaz próprio com a fotografia dos candidatos e um programa, em cada concelho e freguesia a que concorria. Aliás, os custos são inflacionados pelo predomínio do outdoor, um dos mais caros métodos de propaganda, e que se tornou o seu meio principal, estendendo-se o uso às campanhas de freguesias, onde até agora era raro. Pelo contrário, há um acentuado declínio de outros instrumentos de propaganda, como o autocolante. Nestes tempos de pouca popularidade da política, a ideia de andar com uma fotografia de um candidato ou um emblema de um partido ao peito está a desaparecer e é interessante observar como mesmo quem coloca um autocolante numa acção de campanha rapidamente o tira quando deixa o grupo. Há, por isso, uma história da propaganda política em Portugal muito mais interessante às vezes do que a própria política e que nos diz muito sobre o retrato local, etário, social e cultural de Portugal e a mentalidade simbólica do trade-off entre quem pede o voto, o paga com um “brinde” e o recebe ou não.

Será interessante no futuro analisar a economia destas campanhas na evolução dos métodos de propaganda, que hoje quase não são feitas por voluntários, a não ser ao nível de algumas freguesias. Isto significa que há aqui uma enorme oportunidade de “negócio” e, fora dos holofotes, antigos funcionários partidários, empresas de “jotas”, agências de marketing e comunicação, desde o vão de escada às grandes agências nacionais, vão aqui buscar muito dinheiro. Muita desta “economia” é informal, assenta em redes que os partidos controlam a nível local e nacional, em muito casos criadas apenas para as campanhas eleitorais, assentes nos aparelhos partidários.

Como verificaram, refiro-me essencialmente aos meios físicos de campanha, aos átomos e não aos bits, embora muito do que se diz da “economia” das campanhas se aplica à construção de sites e páginas e sua manutenção. Tudo hoje é pago e bem pago, vivendo da falta de controlo financeiro das campanhas, que é a regra e não a excepção.

Por moda e comodidade, o acompanhamento das campanhas pela comunicação social faz-se cada vez mais pelo que se encontra na Rede, seja em páginas do Facebook, seja em “canais” televisivos das candidaturas, com o reflexo dos modismos tecnológicos, ou a cobertura pelo anedótico típico dos “tesourinhos deprimentes”. No final, este tipo de afunilamento é mau para a qualidade do jornalismo e, por exemplo, fez ignorar a importância e novidade das recentes eleições autárquicas. Que um candidato à Chamusca se chame Queimado dá para anedotas, mas não nos diz nada sobre a campanha da Chamusca. Esta atenção ao anedótico, tão típica da futilidade dos nossos dias, deixou incólume coisas muito mais graves e interessantes que nunca chegaram aos jornais, que muitas vezes mostraram um enjoo pelas autárquicas e muita snobeira.

Num cálculo grosseiro, penso que cerca de 100.000 itens diferentes foram produzidos nesta campanha. É muito e, acima de tudo, é muito porque daqui a uns meses não existirá quase nada: o desprezo a que são votados estes instrumentos de acção política terá consequências na perda da nossa memória histórica e política. Costumo dizer àqueles que se intrigam pelo facto de andar de um lado para o outro a recolhê-los (personificado numa pergunta de uma jornalista “para que é que isso serve?”) que esperem para ver o “efeito” que terão quando colocados uns junto aos outros e em sequência cronológica. Nessa altura, os objectos “falarão” e então muita gente perceberá que já é tarde, e que nem a Biblioteca Nacional, nem a Torre do Tombo, nem alguns arquivos especializados terão recursos (já para não falar do interesse) para tentar salvar o que ainda pode ser salvo. O que pretendo dizer é apenas que o número de espécimes produzidos já é tão vasto que torna ainda maior a urgência de os salvar. Não contem com os partidos, que são notoriamente desleixados com este património, contem com a acção cívica e voluntária.

É que vamos precisar para o futuro da memória de tantas faces, tantas promessas, tanta imagem, tanto programa para perceber o Portugal em que vivemos.

1 Comment

  1. Muito agradeço e louvo o meritório e notável trabalho que tem realizado. Sabe o senhor – sabemos ambos – que chegará o tempo em que todo esse esforço será reconhecido. O tesouro que está a construir não tem preço.
    Logo que me seja possível enviarei o material que consegui recolher na minha freguesia. Previa ter efectuado uma recolha intensiva, mas um inesperado problema de saúde deixou-me imobilizado em casa durante muitas semanas, restringindo a colheita.
    Bem haja!

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