JOSÉ PACHECO PEREIRA – MEMÓRIAS DA BIBLIOTECA PÚBLICA MUNICIPAL DO PORTO (NA SÁBADO, MAIO DE 2023)

Quem entra pelo lado esquerdo estão as janelas da Hemeroteca.

As obras que se vão realizar no edifício da Biblioteca estão a gerar controvérsia pelo óbvio prejuízo dos que precisam de lá ir investigar, e há um abaixo-assinado a circular. Por outro lado, admito que o edifício precise de renovação e ampliação, e ser Souto Moura o arquitecto escolhido para esse projecto é uma garantia de qualidade. Por isso, tenho dificuldade em fazer a ponderação entre vantagens e inconvenientes, e não me pronuncio sobre a polémica. Mas desejo que se faça o possível para melhorar um dos edifícios e uma das instituições a que mais devo na minha vida. Nela “alimentei o monstro”, uma das melhores expressões inglesas para designar os estragos que a obsessão pela leitura faz num adolescente.

Durante vários anos, nos anos sessenta, frequentei a Biblioteca de S. Lázaro todos os dias, literalmente todos os dias, de manhã, de tarde e às vezes à noite. E como fazia parte da mobília da casa, não só a conheço muito bem, como sei muitas histórias da Biblioteca, algumas em que fui, como agora se diz, “protagonista”. Começa pela imagem, que nunca esqueço, de Alexandre Herculano a organizar filas de carros de bois, para trazer para o Porto os livros salvos dos conventos, em particular de Coimbra. Esta é uma das imagens fundadoras do Arquivo Ephemera.

A HEMEROTECA

Depois, havia a fauna humana da Biblioteca, os que a frequentavam regularmente. No andar de baixo, à esquerda de quem entra, era a grande sala da Hemeroteca, cheia de luz natural que entrava pelas enormes janelas que davam para a rua, onde passava o eléctrico com os seus mil ruídos, e as pessoas que espreitavam para a sala. Mal abria a sala, havia uma competição pelos jornais do dia ou da semana, e pelas bandas desenhadas que, como eram muito procuradas, estavam logo atrás dos funcionários, para estes não terem trabalho. Dada a composição do pessoal, resultado de cunhas pessoais junto do director, então professor em Letras e ligado ao regime do Estado Novo, a regra era “evitar tudo o que desse trabalho”, o que significava que se se pedisse alguma coisa nas áreas de depósito de acesso mais complicado, a resposta era muitas vezes “não se encontrava”, ou “não estava disponível”. Na Hemeroteca e na Biblioteca, no andar de cima.

Na Hemeroteca, havia uma população de reformados, gente que se percebia viver com dificuldades, que ia para lá matar o tempo lendo jornais. Nas mesas mais atrás, havia frequentadores regulares que tinham um lugar marcado e uma pilha de livros que não era recolhida ao fim do dia. Eram muitas vezes autores de monografias locais, que usavam mangas de alpaca para não sujar a roupa. Era também o caso do meu professor de filosofia, Cruz Malpique, um homem muito especial, também com as mesmas mangas, e que escrevia livros sobre livros sobre livros. Tudo gente estranha, que escrevia em blocos feitos de papel já usado na outra face, livros de recibos, cópias a papel químico, ou coisas semelhantes.

OS JORNAIS MALDITOS

A minha contribuição para a Hemeroteca foi evitar que publicações anarquistas e comunistas dos anos da I República desaparecessem, como tinha acontecido na Biblioteca Nacional, pelas mãos da PIDE e dos seus émulos. A ruptura da memória pela longa censura tinha sido tal, que foi com enorme surpresa que eu descobri que havia um jornal legal do PCP, O Comunista, e outros como a Bandeira Vermelha, o Trabalhador Rural, o Proletário, a Batalha, etc. Quando o jornal estava numa “miscelânea”, ou seja, encadernado em conjunto com outros, era sempre possível pedir um título como a Misericórdia de Évora e vir junto o Trabalhador Rural, jornais que sabia nunca terem sido consultados, visto que estavam por abrir.

Já não era a mesma coisa ter de pedir O Comunista com o nome, que implicava os olhares suspeitos dos funcionários, alguns dos quais com fama de informadores da PIDE. Quando publiquei os meus primeiros livros usando esse material, imediatamente proibidos, a PIDE mostrou particular interesse em saber onde estavam esses jornais subversivos. Com receio do que viesse a acontecer, eu fiz uma coisa que imagino deva colocar os bibliotecários com os cabelos em pé, tirei do catálogo as fichas em papel desses títulos e coloquei-as fora da ordem em sítios que só eu sabia. Quem lá fosse procurar o Proletário, ou a Revolução Social, ficava sem saber que tais títulos existiam na Hemeroteca, logo os censores ficavam a zero. Depois do 25 de Abril fui lá recolocar as fichas e contei a história a alguns dos que trabalhavam na Biblioteca. Não foi uma fila de carros de bois, mas foi um grande contentamento pessoal, que dura até hoje.

(Continua)

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