Quem entra pelo lado esquerdo estão as janelas da Hemeroteca.
As obras que se vão realizar no edifício da Biblioteca estão a gerar controvérsia pelo óbvio prejuízo dos que precisam de lá ir investigar, e há um abaixo-assinado a circular. Por outro lado, admito que o edifício precise de renovação e ampliação, e ser Souto Moura o arquitecto escolhido para esse projecto é uma garantia de qualidade. Por isso, tenho dificuldade em fazer a ponderação entre vantagens e inconvenientes, e não me pronuncio sobre a polémica. Mas desejo que se faça o possível para melhorar um dos edifícios e uma das instituições a que mais devo na minha vida. Nela “alimentei o monstro”, uma das melhores expressões inglesas para designar os estragos que a obsessão pela leitura faz num adolescente.
Durante vários anos, nos anos sessenta, frequentei a Biblioteca de S. Lázaro todos os dias, literalmente todos os dias, de manhã, de tarde e às vezes à noite. E como fazia parte da mobília da casa, não só a conheço muito bem, como sei muitas histórias da Biblioteca, algumas em que fui, como agora se diz, “protagonista”. Começa pela imagem, que nunca esqueço, de Alexandre Herculano a organizar filas de carros de bois, para trazer para o Porto os livros salvos dos conventos, em particular de Coimbra. Esta é uma das imagens fundadoras do Arquivo Ephemera.
A HEMEROTECA
Depois, havia a fauna humana da Biblioteca, os que a frequentavam regularmente. No andar de baixo, à esquerda de quem entra, era a grande sala da Hemeroteca, cheia de luz natural que entrava pelas enormes janelas que davam para a rua, onde passava o eléctrico com os seus mil ruídos, e as pessoas que espreitavam para a sala. Mal abria a sala, havia uma competição pelos jornais do dia ou da semana, e pelas bandas desenhadas que, como eram muito procuradas, estavam logo atrás dos funcionários, para estes não terem trabalho. Dada a composição do pessoal, resultado de cunhas pessoais junto do director, então professor em Letras e ligado ao regime do Estado Novo, a regra era “evitar tudo o que desse trabalho”, o que significava que se se pedisse alguma coisa nas áreas de depósito de acesso mais complicado, a resposta era muitas vezes “não se encontrava”, ou “não estava disponível”. Na Hemeroteca e na Biblioteca, no andar de cima.
Na Hemeroteca, havia uma população de reformados, gente que se percebia viver com dificuldades, que ia para lá matar o tempo lendo jornais. Nas mesas mais atrás, havia frequentadores regulares que tinham um lugar marcado e uma pilha de livros que não era recolhida ao fim do dia. Eram muitas vezes autores de monografias locais, que usavam mangas de alpaca para não sujar a roupa. Era também o caso do meu professor de filosofia, Cruz Malpique, um homem muito especial, também com as mesmas mangas, e que escrevia livros sobre livros sobre livros. Tudo gente estranha, que escrevia em blocos feitos de papel já usado na outra face, livros de recibos, cópias a papel químico, ou coisas semelhantes.
OS JORNAIS MALDITOS
A minha contribuição para a Hemeroteca foi evitar que publicações anarquistas e comunistas dos anos da I República desaparecessem, como tinha acontecido na Biblioteca Nacional, pelas mãos da PIDE e dos seus émulos. A ruptura da memória pela longa censura tinha sido tal, que foi com enorme surpresa que eu descobri que havia um jornal legal do PCP, O Comunista, e outros como a Bandeira Vermelha, o Trabalhador Rural, o Proletário, a Batalha, etc. Quando o jornal estava numa “miscelânea”, ou seja, encadernado em conjunto com outros, era sempre possível pedir um título como a Misericórdia de Évora e vir junto o Trabalhador Rural, jornais que sabia nunca terem sido consultados, visto que estavam por abrir.
Já não era a mesma coisa ter de pedir O Comunista com o nome, que implicava os olhares suspeitos dos funcionários, alguns dos quais com fama de informadores da PIDE. Quando publiquei os meus primeiros livros usando esse material, imediatamente proibidos, a PIDE mostrou particular interesse em saber onde estavam esses jornais subversivos. Com receio do que viesse a acontecer, eu fiz uma coisa que imagino deva colocar os bibliotecários com os cabelos em pé, tirei do catálogo as fichas em papel desses títulos e coloquei-as fora da ordem em sítios que só eu sabia. Quem lá fosse procurar o Proletário, ou a Revolução Social, ficava sem saber que tais títulos existiam na Hemeroteca, logo os censores ficavam a zero. Depois do 25 de Abril fui lá recolocar as fichas e contei a história a alguns dos que trabalhavam na Biblioteca. Não foi uma fila de carros de bois, mas foi um grande contentamento pessoal, que dura até hoje.
(Continua)
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