UM PRÉMIO QUE TAMBÉM É PARA O EPHEMERA

 

O Prémio Vida e Obra da Sociedade Portuguesa de Autores foi dado este ano a José Pacheco Pereira, com menção expressa ao trabalho do Ephemera. O Prémio foi atribuído nos últimos anos a Mário Soares, Siza Vieira, Lobo Antunes, José Augusto França, Eduardo Lourenço, Manuel Alegre entre outros.


Intervenção de José Pacheco Pereira

Como falar de mim não é a minha especialidade, para além do obvio conflito de interesses, deixem-me dizer alguma coisa sobre o trabalho da memória que fazemos no Arquivo e Biblioteca Ephemera. Uso sempre o plural, porque se trata de uma obra colectiva feita por amigos e voluntários, colaborando com todos, autarquias, instituições, universidades, pessoas, mas independente e autónoma. O trabalho da memória exige muito mais coragem do que parece, perigoso em ditadura, e incomodo em democracia.

O nosso trabalho tem duas componentes, uma física – se ganhássemos ao peso estávamos todos ricos, – outra teórica. Sim, temos teoria como verdadeiros trabalhadores manuais de vanguarda, stakanovistas do papel, e presunçosos intelectuais, – embora esta segunda classificação só se aplique a mim.

A teoria manifesta-se nas diferenças. Há várias coisas de diferente no trabalho que fazemos, que representam vantagens e dificuldades.

  1. Somos omnívoros, amigos do tudo e da quantidade, queremos a memória dos de baixo e dos de cima.

Ou seja, o nosso principal problema é o espaço e uma certa pena em não podermos ter tudo, em particular a julgar  pelo grau de destruição quotidiano e pelos momentos privilegiados de destruição: falecimentos, divórcios ou zangas diversas, mudanças de casa, despejos, heranças,  segunda-feira a seguir às eleições e a enorme incúria do estado e das instituições publicas e privadas, empresas familiares, que encontram no lixo o melhor repositório das coisas que lhes atravancam o espaço, ou a gentrificação, ou a “renovação” ou mesmo a demolição. Neste preciso momento, estamos a gastar os nossos escassos recursos para salvar milhares de dossiers, mapas, fotografias, diapositivos, disquetes, que retratam uma parte importante da história económica e social portuguesa. Em cada sala de um vasto edifício para demolir foi deixado um papel que diz “lixo”.

Somos, pois, parceiros, em comer de tudo, dos chimpanzés, ursos, morcegos, esquilos, porcos, formigas, corvos e de um muito especial omnívoro, o ser humano. O que também significa que, não havendo guerra à nossa porta, temos sempre muito que comer.

  1. Depois temos aquela ideia metafísica e de um certo ponto de vista absurda, de querermos tudo.

Quando me dá para a filosofia, eu digo aos nossos visitantes, espantados com o labirinto borgeano que estão a visitar, que é uma maneira muito satisfatória de lutar contra a finitude, a morte. Apertamos a ceifeira entre duas estantes e damos-lhe umas coisas para ler, uma variante do célebre jogo de xadrez do Sétimo Selo, e dizemos-lhe que não a deixamos sair sem ler tudo, um livro de actas de um Centro Republicano, uns registos de fiados de uma mercearia do início do século XX, as cartas de amor entre a “burrinha” e o “elefantezinho” (verdade…), as cartas dos PIDEs à Comissão de Extinção da dita, mapas das águas dos portos da Guiné colonial, o relatório de uma emboscada da guerra colonial, ou um diário de uma adolescente começado aos 12 anos quando foi pela primeira vez “pedida em namoro”, ou um vestido de noiva expressamente feito com a indicação de que devia ser diferente dos da Igreja, porque a noiva era ateia e anticlerical, ou um desenho infantil do senhor general Spinola com o seu monóculo, ou um livro de “pobres” numa Freguesia de Lisboa onde uma senhora condessa em colaboração com o Cardeal Cerejeira inscrevia os pedidos: “Deolinda, casada pela Igreja, quer três pares de calças para os seus filhos…” .

Ilusão por ilusão, esta torna o nosso trabalho numa história que nunca acaba e na qual é difícil imaginar o que encontramos e o que aprendemos. Nem imaginem o que nós sabemos, Never a dull moment que é também uma canção de Rod Stewart. Como as coisas nunca acabam, temos sempre mais para ver do que a ceifeira.

  1. Somos por isso partidários da quantidade, hoje com muito má imprensa e bastante depreciada.

Deveríamos ter como dístico num dos armazéns o que Hegel disse sobre a relação entre a quantidade e a qualidade, ou se quisermos, para os nossos amigos e voluntários que são comunistas, as frases de Engels criticando Hegel via Duhring.

Napoleão descreve o combate travado entre a cavalaria francesa, cujos soldados eram pouco afeitos à equitação, mas que eram, no entanto, disciplinados, e os mamelucos, cuja cavalaria era a melhor do seu tempo para os combates individuais, mas que eram indisciplinados. Eis o que nos diz Napoleão: “Dois mamelucos sobrepujavam, indiscutivelmente, a três franceses; 100 mamelucos faziam frente a 100 franceses; 300 franceses venciam 300 mamelucos e 1.000 franceses derrotavam, inevitavelmente, 1.500 mamelucos”. (…) vemos que, na descrição napoleônica, o destacamento de cavalaria tem que alcançar um determinado limite mínimo para que a força da disciplina que se encerra na ordem unida de combate, e no emprego das forças, com base num só plano, possa se manifestar e se desenvolver até o ponto de poder aniquilar massas numericamente superiores de uma cavalaria irregular, composta de melhores montarias e de soldados tão bravos pelo menos quanto os outros. (…) Não acabou por sucumbir Napoleão na sua luta contra a Europa? Não sofreu ele derrotas sobre derrotas? Por que foi derrotado Napoleão? Pura e exclusivamente por ter desejado aplicar à tática da cavalaria a confusa e nebulosa idéia de Hegel…

Salvemo-nos pelo materialismo dialéctico, entre os seis quilómetros de estantes, onde a quantidade reina e onde a qualidade nasce. Sim temos centenas de Bíblias e de catecismos e livros de orações e, de repente, para utilizarmos o jargão da filosofia alemã, o Ser-para-si, torna-se um Ser-para-Outro, e se revela nos pequenos papéis que estão lá dentro: uma oração aos pescadores da frota do bacalhau e outra pelos nossos Viriatos que combatem em Espanha, e outra ainda para que Nossa Senhora ajude a converter os comunistas, os do “alçapão” queirosiano que queriam derrubar o Senhor Professor Doutor António Oliveira Salazar. Vénia. O problema é que Nossa Senhora enganou-se no alvo, em vez dos pastorinhos devia ter aparecido na Lisnave em pleno PREC.

  1. Somos militantes da memória dos de cima e dos de baixo, com a inspiração do poema de Brecht, Perguntas de um Operário Letrado.

Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?

Não, não foram. No arquivo estão os Césares e os cozinheiros dos Césares, operários, ferroviários, empregados de escritório, costureiras, metalúrgicos, têxteis, jovens deficientes, “criadas de servir”, soldados, que escreveram cartas, pequenos manuais técnicos para engatar as carruagens de comboios devidamente, e o homem que inventou um colchete português subvertendo uma patente inglesa, e que foi, primeiro admoestado pelas horas que estava a gastar da Companhia, e depois condecorado como operário modelo, etc.

Estamos, pois, cheios do material desta casa, autores. Já estão um pouco envelhecidos e parecem ser aquela actividade que a nossa pequenez faz muito bem dropping names, como dizem os ingleses, deixar cair nomes para mostrar sabedoria, mas eles acumulam-se, os de baixo e os de cima, em quantidade, em todas as línguas, submetidos ao nosso desejo de ter tudo invocando para isso: Napoleão, Hegel, Engels, Brecht, Bergman, Jorge Luis Borges e …Rod Stewart.

A memória é também a casa dos autores.

*

Dito tudo isto podemos perguntar do ponto de vista cívico e democrático, para que serve a memória? Não estaremos melhor sem o peso da memória? Não, não estamos, ficamos pior.

Estamos num momento de crise do saber, de crise da cultura, de crise na democracia. Sei bem que em cada geração há quem diga isto e a história está cheia de catastrofismos culturais que se compreendem mais pela psicologia da finitude do que pela realidade. Mas num dia, numa época, nem tempo, pode mesmo ser verdade e eu não queria vir depois e olhar para as ruínas. Fazemos por que tal não aconteça.

Precisamos de mediações e a memória é uma dessas mediações – não nos impede de fazer asneiras, a humanidade já o mostrou à saciedade, – mas permite aos homens com memória perceber que são asneiras e talvez, talvez, moderar os estragos.

Neste dia em que a SPA me premeia como autor, aqui fica pois ínfima parte da obra colectiva de que faço parte,

Disse.

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