“Os segredos de Cândido de Oliveira
O Núcleo Ephemera Sport, dedicado à conservação e catalogação do material desportivo bibliográfico, iconográfico e muito mais, está pleno de achados raros sobre a história do desporto português e não só. Exemplo disso é este livro de Cândido de Oliveira, Os Segredos do Futebol, carinhosamente aqui guardado.
Cândido de Oliveira (1896-1958) já tinha publicado um pequeno tratado de futebol em 1935, intitulado Futebol – Técnica e Táctica. No entanto, em 1947, publicara aquela que seria a sua grande obra pedagógica e, de alguma forma – no contexto da sua evolução como treinador –, autobiográfica. Os Segredos do Futebol é a súmula do crescimento de Cândido de Oliveira enquanto técnico de futebol e do seu percurso igualmente como um dos mais importantes jornalistas desportivos portugueses, tendo colaborado na maioria dos periódicos mais difundidos e influentes em língua portuguesa – caso de Os Sports, O Século, Eco dos Sports ou Record (o antigo periódico da década de 20, dirigido por Salazar Carreira) – e fundado a revista Football (1920) e o jornal A Bola (1945), embora estivesse envolvido no apoio à criação de vários outros projetos semelhantes. Criado na Casa Pia de Lisboa, Cândido de Oliveira seria uma das figuras mais influentes – senão a mais omnipresente das mesmas – no desenvolvimento do futebol português. Jogador, jornalista, treinador e selecionador, foi desde cedo um prodígio, tendo em 1914 recebido o Prémio Januário Barreto para melhor futebolista, atribuído por votação dos membros da equipa de futebol da escola.
Logo no prefácio de Os Segredos do Futebol, Cândido de Oliveira refere como, após a publicação de Técnica e Táctica em 1935, logo pensou num “segundo volume, no qual trataríamos os problemas do ensino, da aprendizagem e treino dos jogadores, e da aplicação prática das noções anteriormente expendidas sobre a táctica do jogo”. No entanto, a urgência desse trabalho esmoreceu, já que se deparou com o desinteresse de clubes e federações da modalidade com a aprendizagem técnica e táctica. Uma realidade que já tinha constatado e relatado em 1936, no seu Relatório da minha viagem a Inglaterra, onde descreve o que observou num breve curso e estágio com o Arsenal de Londres e o seu famoso treinador Herbert Chapman, onde Cândido foi beber muito do seu conhecimento, particularmente a famosa formação táctica WM, que implicava o recuo de um dos médios (“half backs”) para junto dos defesas (“full backs”), passando esse médio recuado a “terceiro defesa” e vértice central do “M” que dá nome à táctica.
Num apontamento talvez supérfluo, o “óbito” do WM de Chapman talvez possa ser declarado no jogo Inglaterra-Hungria de 25 de novembro de 1953, em que os húngaros, adotando e alterando o WM, o evoluíram para a fluidez de um 4-2-4, que estaria na base das alterações do futebol mundial dos anos 50. O Brasil de 1958, com Garrinha e companhia, já conquistaria o título nesta formação. O papel de Cândido de Oliveira na difusão desta formação tática em Portugal nos anos 30 foi, no entanto, decisivo quer para o conhecimento técnico dos futebolistas portugueses quer para o desenvolvimento da própria modalidade no país. Após os primeiros livros do autor sobre este sistema, Ribeiro dos Reis passou a aplicar o mesmo no Benfica, e o próprio Cândido passou a aplicá-lo no Belenenses e na seleção nacional de futebol, que treinara.
A importância de Cândido de Oliveira estende-se além do futebol, como é sobejamente conhecido, e normalmente esta sua faceta de pioneiro na difusão técnica e tática em Portugal é esquecida face à sua coragem noutros departamentos. Conhecido antipatizante do regime do Estado Novo, o treinador e jornalista vivera permanentemente sob a desconfiança dos governantes daquele período. Não sem razão: Cândido de Oliveira colaborava com os serviços secretos britânicos (SOE) durante a II Guerra Mundial. Espiava para os Aliados, passando informações valiosas e pertencendo à “Rede Shell”, que tinha a missão de inutilizar a rede de combustível para os alemães em caso de invasão. Na madrugada de 28 de fevereiro de 1942, a PVDE entrou em sua casa, interrogou-o e agrediu-o, tendo-lhe partido todos os dentes. O seu destino foi o campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, de onde apenas saiu em maio de 1944. Publicado apenas em 1974, o seu relato Tarrafal – O Pântano da Morte é essencial para conhecer essa realidade, mas igualmente para perceber como o futebol não era um instrumento do regime, mas antes mais um dos sectores da sociedade vigiados pelo olhar punitivo da PVDE (depois PIDE).
Em 1949, publicaria o seu tratado definitivo WM – A Evolução Táctica no Futebol, mas não sobreviveria outra década. Morreu em 23 de junho de 1958, com problemas respiratórios, na Suécia, onde fora acompanhar o Mundial de Futebol. Tinha 61 anos.
(Núcleo Ephemera Sport – João Santana da Silva, 16/07/2020)
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