JOSÉ PACHECO PEREIRA – ELOGIO EM CAUSA PRÓPRIA QUE NÃO É VITUPÉRIO (PÚBLICO, 29 DE ABRIL DE 2023

Elogio em causa própria que não é vitupério

Este esforço da Associação Cultural Ephemera é único e ninguém no país, nem à força de muitas centenas de milhares de euros, fez, faz o que fizemos. Como é que não podemos ter orgulho no nosso trabalho?

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Este artigo contém todos os conflitos de interesse possíveis. E isso significa, claro, que tem vantagens. A Associação Cultural Ephemera ganha alguma coisa com artigos como este, mas, começando já nos elogios, é mais que merecido. Temos tido uma atenção irregular, mas considerável da comunicação social, mas neste artigo o que me interessa é o conjunto do que estamos a fazer nestes dias, e não os detalhes das exposições mais “famosas” – e isso ninguém cobre. Falo, como é óbvio, da actividade do Ephemera nestes meses de Março-Maio, centrada nas datas emblemáticas do 25 de Abril e Primeiro de Maio, principalmente exposições e debates.

Mas, como, na realidade, o “ganho” contém dezenas de horas de trabalho voluntário, que se fosse pago valia muito, parcerias pro bono e, nalguns casos, muito dinheiro próprio gasto sem qualquer retorno, estou à vontade para o escrever. Claro que alguns serviços, transportes, molduras, montagem, design, mobiliário foram de responsabilidade em particular de autarquias ou instituições que beneficiaram dos eventos nos seus programas culturais e cívicos. Mas, na maioria dos casos, estão longe de “pagar” o que habitualmente pagam por um décimo do que lhes foi oferecido e proporcionado. E, mesmo nalguns casos, tratando-se de pequenas autarquias, de escolas, e outras instituições “pobres”, nem isso custa, porque nada lhes é cobrado. Este esforço é único e ninguém no país, nem à força de muitas centenas de milhares de euros, fez, faz o que fizemos. Temos gosto, sentido cívico e orgulho e por isso falamos disso em todo o lado sem falsa modéstia. Nem tudo é perfeito, mas pedimos meças.

um, participou-se na exposição dos Tesouros dos Arquivo do Barreiro em Lisboa na Gare Marítima de Alcântara;

dois, abriu-se uma exposição com cartazes artesanais na Junta de Freguesia de Argoncilhe (Santa Maria da Feira):

três, abriu-se uma outra exposição sobre a “face dos livros”, as capas, na Guarda;

quatro e cinco, duas em Viseu, uma de cartazes do 25 de Abril na Escola Secundária Alves Martins e outra sobre a censura na Casa Amarela;

seis, uma exposição sobre a censura dos livros em Odemira;

sete, uma exposição sobre os jornais dos dias de 25 de Abril a 1 de Maio de 1974, no Grupo Desportivo e Cultural dos Trabalhadores dos Estaleiros Navais de Viana;

oito, outra em Castelo Branco, na Escola Superior de Artes Aplicadas, também com cartazes das comemorações do 25 de Abril ao longo destes 49 anos;

nove, dez, onze, mais três, em Lisboa, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, também com cartazes do 25 de Abril, e outra sobre os “sinais da liberdade” a partir da iconografia do 25 de Abril no Tribunal da Boa Hora. No Primeiro de Maio inaugura-se outra em colaboração com a Comissão dos 50 Anos do 25 de Abril com o título Unidos Venceremos, sobre a resistência sindical e operária nos anos de 1968-1974, com dois núcleos, um em Lisboa e outro no Barreiro;

doze, no Barreiro já está outra exposição na Escola Superior de Tecnologia sobre o impacto social da covid.

Doze ao todo e vai haver mais em Junho, Julho e no último trimestre deste ano. Todas usando o vasto património do Arquivo Ephemera, desde um despacho da censura, a um cartaz de uma autarquia comemorando o 25 de Abril, a um filme de um comício negacionista da covid, a uma edição das várias do República no dia 25 de Abril, a uma capa de Almada, à estatueta de Cunhal vestido de jogador do Futebol Clube do Porto, a um humilde cartaz com cartão arrancado da tampa de uma caixa, que diz esta coisa enorme “Não me Calo!”, ou um panfleto clandestino apoiando os operários da Abelheira, ou uma fotografia das filas de bancários a eleger a sua direcção “da classe”.

Gravura usada num boletim de um sindicato democrático antes do 25 de Abril DR

Em todos os locais, têm sido feitos debates, apresentações, visitas guiadas, num esforço enorme de deslocações por todo o país. E reparem nos locais: autarquias grandes e pequenas, escolas secundárias, politécnicos, universidades, clubes operários, bibliotecas locais. O cartaz artesanal em cartão numa manifestação ecologista em Lisboa, que foi reproduzido na capa do New York Times, não da capa, mas na capa, está com muita honra na Junta de Freguesia de Argoncilhe. Milhares de pessoas, incluindo muitas turmas de alunos de escolas de vários graus de ensino, já passaram por estas exposições, leram as legendas e os textos das folhas de sala, viram objectos reais e não imagens, documentos originais e não reproduções, fotografias inéditas e manuscritos únicos.

Não há melhor pedagogia da memória e isso dá frutos. O empreiteiro que está a demolir um armazém e pergunta se nos interessa os papéis que os trolhas estão a pisar – vamos buscar e é o arquivo do MDP/CDE de Aveiro… O amigo que nos diz que o CDS de Coimbra fechou a sede e deitou tudo ao lixo e que se pode ir recolher in extremis… A senhora que viu a vizinha da frente colocar no lixo uma série de pastas, que recolheu e nos trouxe – toda a história da agricultura de Angola nos anos 50-60. Etc., etc., etc.

Como é que não podemos ter orgulho no nosso trabalho?

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