EPHEMERA – NOTÍCIAS DA SEMANA ( DE 25 A 31DE JANEIRO DE 2016)

EM CONSTRUÇÃO

Ver  EPHEMERA – NOTÍCIAS DA SEMANA ( DE 25 A 31DE JANEIRO DE 2016) – SUPLEMENTO DA BIBLIOTECA

APELO

Está a ser preparado um novo volume da Colecção EPHEMERA com um segundo catálogo de autocolantes (o primeiro foi o do PPD – 1974-6), que agrupará os autocolantes de um conjunto de organizações da Frente de Unidade Revolucionária (FUR). Das organizações da FUR, Frente Socialista Popular (FSP), Liga Comunista Internacionalista (LCI), Liga de Unidade e Acção Revolucionária (LUAR), Movimento de Esquerda Socialista (MES), Partido Revolucionário do Proletariado (PRP), apenas o MDP-CDE não será incluído e terá mais tarde um volume à parte. A intenção é catalogar todos os autocolantes conhecidos dessas organizações e recolher todas as informações sobre datação, tiragens, tipografias, autoria do desenho e do grafismo, etc. Para isso pedimos aos nossos leitores e amigos que nos indiquem, enviem originais ou reproduções dos autocolantes dessas organizações. As existências podem ser consultadas no EPHEMERA.

COLECÇÃO EPHEMERA

30 de janeiro de 2016

Está pronto e entregue na Tinta da China o próximo volume da Colecção Ephemera, de autoria de Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes e com o título de A Conquista das Almas – Cartazes e Panfletos da Acção Psicológica na Guerra Colonial. Este volume, escrito por dois distintos militares, historiadores e escritores com conhecimento directo da matéria durante a guerra colonial,   explora a colecção existente no ARQUIVO / BIBLIOTECA (Acervo Sousa e Castro) de panfletos e cartazes anti- FRELIMO produzidos pelas forças armadas portuguesas  em Moçambique.

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Continua a preparação de outros dois volumes:

  • Fernando Pereira Marques , “Uma Nova Concepção de Luta” – Materiais Inéditos para a História da LUAR
  • José Pacheco Pereira / Júlio Sequeira, Catálogo de Autocolantes de Organizações da FUR (FSP, LCI, LUAR, MES, PRP-BR). (VER APELO no início desta nota.)

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CUNHAL IV

31 de janeiro de 2016

ver texto em anexo.

AGRADECIMENTOS E ENTRADAS

Tem havido um número muito significativo de ofertas para o ARQUIVO / BIBLIOTECA,  a que não tem correspondido a capacidade para a sua recolha, em várias partes do país. Nenhuma está esquecida e todas estão a ser seguidas com o maior dos cuidados. Peço desculpa pelo atraso e, às vezes, a resposta fora de tempo. Mas nenhuma ficará perdida.

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Agradeço a Carlos Corais a oferta de um conjunto de cartazes soviéticos originais , que adquiriu nos EUA na década de 90 do século passado. É uma contribuição importante para a colecção de cartazes existente no ARQUIVO.

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Agradeço a Manuel Pegado a oferta que fez dos seus arquivos pessoais, constituídos numa vida de militância quer no PC(R) quer na UDP, em Beja e na Madeira. Trata-se de um conjunto de documentação vastíssimo. de que entrou apenas uma parte, visto que está a ser trazido da Madeira. Ainda se fez apenas uma primeira amostragem e o seu interesse é manifesto: contém um conjunto de pastas com documentação detalhada do PC(R) e da UDP, contendo panfletos e periódicos, documentos internos e manuscritos, cobrindo quer a actividade nacional como a regional. Em breve se fará uma noticia mais detalhada.

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Agradeço a Joaquim Matos (e a sua filha Rita Matos) mais uma oferta de um conjunto de materiais cobrindo  organizações e actividades políticas e sindicais no final da década de setenta do século passado. Não só os materiais enviados incluem documentação original e única (manuscritos e notas), como se encontram organizados de forma que facilita muito a sua incorporação no ARQUIVO / BIBLIOTECA . Destacam-se nas pastas de documentação enviada, materiais sobre várias organizações políticas (OUT, FUP. FP 25 de Abril, GDUPs, etc.) como sobre sindicatos, com relevo para o Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas.

Autocolantes das eleições nos bancários em 1978 e 1979, parte de pastas muito completas sobre as diferentes listas, em várias das eleições mais competitivas da época e decisivas para a recomposição do movimento sindical depois do 25 de Abril.

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Autocolante gigante em rolo.

Agradeço à campanha de Sampaio da Nóvoa um trabalho de recolha exemplar de todos os documentos, panfletos, objectos, bandeiras, cartazes, faixas de lona, pins, autocolantes, etc. produzidos durante as eleições presidenciais. Muitas vezes as candidaturas prometem realizar essa recolha, mas neste caso o processo foi seguido com bastante rigor, permitindo guardar um registo bastante completo da campanha.

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Scanner_20160130 (21)Agradeço a Joana Pontes a oferta de parte da biblioteca de seu pai relativa ao seu trabalho no Instituto de Angola e que descreve nestes termos:

O meu pai trabalhou muitos anos em África, primeiro em Moçambique e depois em Angola. Em Luanda, esteve à frente de um Instituto, o Instituto de Angola, que desenvolvia intensa actividade quer na área das exposições e concertos quer na organização de congressos – sei, por exemplo, que organizou o I Congresso dos Economistas Portugueses em 1955 – palestras, cursos, entre outras. Entre os livros do meu pai estão vários volumes encadernados com a história deste Instituto. São boletins – analítico, bibliográfico – que dão conta das actividades desenvolvidas. 

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Agradeço a Miguel  Baltazar o excelente trabalho de cobertura de manifestações e outros eventos em Londres.

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Agradeço ao coronel Sousa e Castro mais um envio de materiais, em complemento do Acervo já oferecido. Desta vez vieram os documentos:

  • das finanças da campanha de Maria de Lourdes Pintasilgo;
  • da candidatura do PDR às legislativas de 2015, incluindo papéis internos, panfletos, autocolantes, pins, cartazes, formulários, maquetas, etc. .

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Junto com os fanzines entraram várias publicações alternativas.

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Entrou, por aquisição, um conjunto de “bumper stickers“, uma forma tipicamente americana de propaganda política: autocolantes grandes para colocar nos carros.

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UMA CURIOSIDADE: MAPAS DA II GUERRA MUNDIAL

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PARABÉNS !

Aos Amigos do EPHEMERA  no Facebook que ultrapassaram os 3000 “gostos”. No Twitter também tem sido um sucesso.

 

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ANEXO:

ARTIGO NO PÚBLICO SOBRE A RAPID RESPONSE COLLECTION

(Ver EPHEMERA – NOTÍCIAS DA SEMANA ( DE 18 A 24 DE JANEIRO DE 2016) )

Os objectos da memória

Na colecção estão vários objectos como uma pistola feita numa impressora 3D, um computador destruído, um brinquedo do Ikea, uma série intitulada Les Nudes de sapatos de Christian Louboutin, uns jeans anódinos da Primark, um conjunto de pequenos cones de aço incrustados numa placa, por aí adiante. No entanto nenhum destes objectos é “inocente”. A pistola cujo modelo se chama FP-45 Liberator, podia fazer-se em casa a partir de planos que estiveram na Internet (foram descarregados 100.000 vezes) e que  foram apreendidos  a pedido do Departamento de Estado e, como se passa com muita coisa da Rede, continuam lá. Os jeans foram feitos numa fábrica do Bangladesh que funcionava num edifício que colapsou matando mais de 1000 pessoas. A história dos Louboutin é a que menos me interessa, mas os restos do computador esses vieram do Guardian, quando a polícia obrigou o jornal a destruir à martelada os computadores onde estavam os ficheiros com os documentos que Edward Snowden tinha trazido das agências de espionagem electrónica, revelando a amplitude das escutas mundiais que os EUA e o Reino Unido faziam. O jornal informou as autoridades de que não havia razão nenhuma para destruir os computadores, dado que os ficheiros estavam copiados  em sítio seguro mas, mesmo assim, o acto teve que se realizar, como se uma martelada num disco duro e num teclado punisse um qualquer génio do mal que estivesse lá dentro. Os cones de aço são nem mais nem menos de que uma espécie de “anti-cama” para evitar que um sem-abrigo durma no espaço que eles demarcam no chão. O brinquedo do Ikea, um lobo chamado Lufsig, foi atirado num protesto a Leung Chun-ying, um político de Hong Kong. Logo a seguir os Lufsig esgotaram na cidade.

A “rapid response collection” interessa-me porque no meu trabalho de colector-recolector também tenho tentado obter alguns objectos deste tipo, quase sempre com sucesso visto que ninguém liga em Portugal a este tipo de “memória”. Mesmo nos objectos mais evidentes, em que a história “tocou” sem ou com pouca imaginação, –  a escolha dos objectos do Museu Victoria e Alberto mostra um trabalho aturado de escolha e criatividade, –  todos ficam ignorados e muitos desapareceram de vez na máquina trituradora do esquecimento, que em Portugal trabalha a pleno vapor. As actividades políticas são tão estereotipadas que não deixam nada que mereça ser lembrado, mas na vida cívica mais geral há vários objectos que podiam estar numa “rapid response collection” portuguesa. Falarei de alguns que, pelo menos eu guardei.

Já que não posso ter um contentor dos retornados, um dos objectos que marca a história da descolonização, com o nome, pintado em letras enormes, dos possuidores dos escassos bens que uma família portuguesa pode salvar de Angola, tenho uma genuína valise en carton. A humilde mala, imortalizada por Linda de Suza, simbolizou a saga dos emigrantes nos anos sessenta, na qual viajavam, muitas vezes à cabeça, os pouco pertences que se levavam para França. A que tenho na minha “rapid response collection”  foi para lá  levada por um emigrante e regressou cheia de recortes sobre a emigração, adquirida por José Carlos Ferreira de Almeida (1934-2009), um dos fundadores da moderna sociologia em Portugal e autor de vários estudos sobre a emigração, cujo espólio adquiri.

De antes do 25 de Abril, há um copiógrafo Gestetner, um conjunto de fitas de máquina e papéis químicos usados numa tipografia clandestina e que se destinavam a ser queimados. Era o tipo de objectos que não se podia deitar fora, visto que no papel químico de tirar cópias, mesmo que usado muitas vezes, ficavam partes do texto e nas fitas, a preto e vermelho, a mesma coisa. Há também um granada de gás lacrimogéneo, de origem americana, usada pela polícia numa manifestação, obviamente vazia. Foi apanhada para devolver à procedência, quando ainda fumegava, mas foram salvos, a granada e o alvo, pelas inscrições reveladoras da cumplicidade da polícia de cá com o “imperialismo americano”. Podia ser mais útil nessa denúncia, e acabou por não ser útil para nada, a não ser para a “rapid response collection”.

Outro objecto é um vulgar prego, daqueles com que antigamente se jogava na praia. Na verdade, podia ser um prego qualquer e nada atesta que também ele tenha sido “tocado” pela história, mas foi. No referendo sobre a independência em Timor em 1999, os timorenses que tinham uma elevada taxa de analfabetismo, não votavam preenchendo uma cruz, mas furando no sítio da cruz com o sim ou o não o boletim de voto. Faziam-no com um prego que estava preso nas cabines de voto, como hoje está uma esferográfica. Estive em Timor nesse dia e visitei várias mesas de voto, e, quando a votação terminou, guardei um desses pregos, instrumento de uma decisão histórica que deu ao mundo mais um país independente.

Destes tempos da “crise”, cuja memória tem sido tão descuidada, existem vários objectos que podiam fazer parte de uma “rapid response collection”, a começar por vários cartazes espontâneos, feitos em cartolina, onde um qualquer cidadão anónimo escreveu o seu protesto, muitas vezes com erros de ortografia e frases incompreensíveis, e que foram recolhidos do lixo depois das manifestações. Ou as ementas para os que “estavam fartos de coelho” de um restaurante de Lisboa, ou, por fim, um Zé Povinho, fazendo um manguito nem mais nem menos do que à agência de notação Moody’s.

A perda de materialidade da actividade política e cívica, um dos aspectos da nossa memória colectiva, faz com que no futuro não se possa “expor” mais do que páginas na Internet, o que, convenhamos, perde muito de força quando comparados com o terrível Lufsig do Ikea ou a “valise” cantada pela Linda de Suza. A deslocação da memória para dentro dos computadores, tablets e telefones, é inevitável e, em teoria, mais segura de conservar. Em teoria. Mas a perda de materialidade e do espaço físico, acaba por acelerar a destruição do rastro, apesar de tudo mais decisivo porque real e não virtual, da nossa memória. As calças Primark estão lá para recordar que o prédio que se abateu sobre a sweatshop era feito de cimento real e não virtual. Do mesmo modo, uma antiga máquina de escrever e um copiógrafo dizem que era tão difícil escrever um texto e reproduzi-lo e hoje é fácil fazer uma pistola Liberator. A memória, para ser real, precisa de objectos porque o tempo incorpora-se nos objectos de uma forma que contém as imperfeições. E a história gosta de imperfeições.

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Álvaro Cunhal: a mais importante biografia política sobre o século XX português

Os quatro volumes já publicados sobre Álvaro Cunhal, da autoria de José Pacheco Pereira, constituem um dos estudos monográficos de maior relevo sobre a história do século XX português.

Livros Álvaro Cunhal – Uma biografia política, vol. 4 – O Secretário-Geral (1960-1968)

Dez anos depois de publicado o terceiro volume, saiu o quarto da biografia política de Álvaro Cunhal, da autoria do historiador José Pacheco Pereira. Com os seus catorze capítulos a ocupar 469 páginas, este é o volume mais pequeno da obra, uma vez que os dois anteriores atingiram quase o dobro das páginas. No seu conjunto, trata-se do trabalho de uma vida, escrito com isenção por quem sempre assumiu uma trajectória política que nada tem de linear e é, hoje, uma figura pública dos meios de comunicação portugueses, respeitada pelo modo frontal como escreve e fala acerca da vida política nacional e internacional.

Os quatro volumes já publicados sobre Álvaro Cunhal constituem um dos estudos monográficos de maior relevo sobre a história do século XX português. E, sem dúvida, a mais importante biografia política, já publicada, sobre o mesmo período. Claro que avaliações do género são controversas e ainda mais o seriam se se tivesse em conta a biografia que Vitorino Magalhães Godinho escreveu sobre o seu próprio pai, que passou despercebida num panorama em que a crítica é incipiente.

Num momento em que a história, tal como tantas outras formas da vida cultural, tende a ser monopolizada pelas universidades, cabe a um historiador, dobrado de político, escrever uma das obras mais importantes da história contemporânea portuguesa. A tenacidade do autor e o modo como tem sabido preparar e estruturar a sua obra, recorrendo ao tratamento de períodos curtos e procurando identificar os eixos temáticos que dão sentido à vida do biografado, constituem as chaves capazes de explicar esta situação. Mas é inevitável perguntar, mesmo que se fique sem resposta, o que têm andado os historiadores académicos a fazer?

É, pois, como resultado de uma investigação séria que esta obra merece ser lida e criticada. Conferir à obra de Pacheco Pereira este estatuto, fundado na intencionalidade do próprio autor, permite ultrapassar a discussão acerca da escrita da história para o grande público – um tema extremamente ambíguo, por vezes perverso, manipulado por editores ao sabor das suas próprias incertezas e ignorâncias. Que não haja equívocos: as razões que asseguram a qualidade desta obra no seu conjunto nada têm que ver com o facto de ter sido escrita para ser acessível ao grande público; tão pouco se pode argumentar que foi o perfil mediático do seu autor que catapultou a sua obra para os escaparates das livrarias. Pelo contrário, foram os critérios rigorosos da pesquisa e da escrita da história, tão elevados que nem sempre estão ao alcance dos historiadores universitários, que lhe permitiram alcançar o estatuto de obra de referência.

Este quarto volume, que cobre grande parte da década de 1960, acabou por ser publicado dez anos depois do anterior. Entretanto, saíram vários volumes das Obras Escolhidas de Álvaro Cunhal pelas Edições Avante! (t.º 2, 2008; muito em especial o t.º 3, 2008; e o t.º 4, 2013). Sob a coordenação do seu director e membro do comité central do PCP, Francisco Melo, estas últimas Obras constituem um trabalho editorial que tem de ser reconhecido pelo seu rigor, ao lado do que já tinha sucedido com as Obras Escolhidas de Lenine. Assim, desde 2007, o PCP e as Edições Avante!, com o seu projecto de publicação das obras de Cunhal, adoptaram o mesmo critério cronológico seguido por Pacheco Pereira na sua “biografia política” e, antecipando-se, retiraram a esta última obra, muito em particular a este t.º 4, relativo aos anos 1960, o seu momentum.

A vida política de Cunhal – desde que fugiu da prisão até ao marcelismo, com as suas passagens no exílio por Moscovo, Bucareste e Paris, onde continuou a viver na clandestinidade – foi profundamente marcada pela sua relação com a escrita. Na década de 1960, sem dúvida, na sequência dos muitos anos já passados no isolamento da prisão, Cunhal revelou-se um escritor extremamente prolífico. Um intelectual comprometido, como muitos dos resistentes à Ditadura de Salazar gostariam de ter sido. Os textos que, então, escreveu ou publicou, embora em edições que tiveram circulação restrita, constituem as peças essenciais – e de maior fôlego – da sua interpretação do marxismo-leninismo. A este respeito, Rumo à vitória (1964) é, talvez, a obra essencial, mas de nenhum modo a única, conforme se pode verificar nos citados volumes das Obras Escolhidas das Edições Avante!.

O que mais interessa aqui registar é que, entre 1960 e 1968, Cunhal publicou mais de um milhar de páginas, onde conciliou análise da situação política, social e económica, com pensamento de carácter doutrinal. Ora, dada a dimensão da obra política escrita de Cunhal, os riscos de uma biografia política ficar presa aos próprios termos utilizados pelo biografado, nos seus escritos, são enormes. E, apesar de Pacheco Pereira, ter muitas vezes procurado contextualizar os discursos de Cunhal, através de uma reconstituição das suas acções e dos que com ele se relacionaram, seguindo os seus movimentos no exílio e na clandestinidade, o certo é que o modo de tratar a vida do seu biografado, muito em particular durante a década de 1960, surge demasiado marcado pelos termos utilizados por Cunhal nos discursos que escreveu durante esse mesmo período. A ponto de acabar por ser mais útil ler directamente os discursos de Cunhal do que a biografia política que sobre eles assenta.

Para ultrapassar os riscos que corre qualquer biografia de um escritor, que produziu textos considerados políticos, de ficar encerrada na repetição dos próprios termos dos discursos que toma por objecto, seria necessário encontrar uma outra distância. Esta necessidade de encontrar uma outra perspectiva afigura-se tanto mais urgente, quanto o próprio escritor de discursos políticos também se envolveu, em paralelo, na criação de uma série de obras de sentido literário, elas próprias capazes de estabelecer um outro ângulo para as suas posições políticas. Pacheco Pereira não deixa de constatar a existência desse outro território, mais propriamente ligado à produção literária de Cunhal; mas, uma vez reconhecido esse outro território como a forma possível que Cunhal encontrou para elaborar a sua própria autobiografia, Pacheco Pereira descarta-se dele. Isto é, não o considera enquanto objecto ou dimensão analítica, passível de integrar a sua “biografia política”. Pelo menos é o que acontece neste volume e nos anteriores.

Em suma, a biografia política em causa não conseguiu analisar os discursos políticos – e muito menos os literários – de autoria do biografado. Ora, este último manteve, sobretudo nos anos 1960-1968 de que este volume se ocupa, uma relação obsessiva e omnipresente com a escrita. O autor da biografia limitou-se a reproduzir ou a resumir os próprios termos dos discursos do biografado que tomou como seu objecto, acabando por ficar neles enredado. Com esta mesma limitação, Pacheco Pereira submeteu-se à produção de sentidos dos textos que foram escritos como discursos de acção, versando sobre realidades, concretas e objectivas. Submissão que acabará por contribuir para alimentar o mito da inteligência, do faro político e da profundidade intelectual do biografado. No fundo, um mito que conjuga, em torno da figura de Cunhal, tenacidade individual com capacidade para chefiar uma hierarquia burocrática partidária e, por sua vez, com o reconhecimento carismático junto das massas.

O centralismo democrático, o pragmatismo das alianças na luta contra o fascismo, a defesa do recurso à violência e à acção armada ou, numa outra escala, o modo de representar Humberto Delgado ou Francisco Martins Rodrigues são evocados na biografia, a partir dos termos utilizados por Cunhal nos seus escritos. No único capítulo dedicado à Guerra Colonia – onde trata das relações do PCP com os movimentos de libertação, com a mobilização militar e a deserção, deixando o leitor com água na boca, dado o impacto da guerra de África nos anos 1960 –, Pacheco Pereira cola-se demasiado à visão de Cunhal e do PCP por ele representado. Ora, estes últimos pretenderam fazer crer que os republicanos, com o seu Programa para a Democratização da República (1960-1961), excluíam, do seu modo de entender a questão ultramarina, a independência. Ora, os subscritores de tal Programa, bem como outros republicanos com um experiência colonial, a começar por Augusto Casimiro, também defenderam a autodeterminação dos povos e a independência das colónias. Ou seja, não se pode continuar a dizer que os republicanos democratas, liberais e burgueses, apoiaram em bloco a política colonial de Salazar em 1961 e só o PCP se lhe opôs abertamente (pp. 161 e 287).

Apesar de breves, três momentos desta biografia política, relativos à esfera mais privada e aos afectos de Álvaro Cunhal, são particularmente conseguidos: o das relações amorosas e conjugais de Cunhal, o da sua relação com a filha e a bela carta à irmã, no momento da morte do pai. A este respeito, seria tentador saber mais e procurar estabelecer uma ligação entre vida política e privada. Porém, dada a escassez de materiais para reconstituir esta última esfera, Pacheco Pereira, de modo equilibrado e contido, nem sequer enuncia tal tipo de especulações. Só no encontro com Mário Soares, quando ambos se encontraram no exílio, se voltou a fazer notar o gelo de Cunhal em face do seu antigo aluno, a quem não deu troco, quando este último lhe perguntou pela família.

Mas essa ausência de materiais sobre a esfera privada – entendida, talvez, como uma criação da burguesia, recusada pelo marxismo-leninismo – não será ela própria um acto deliberado? Uma construção largamente condicionada pelo mito comunista da dedicação democrática ao colectivo e às realidades sociais e económicas em que o indivíduo desaparece? Um mito, que se alimenta de um esforço contínuo de auto-representação, mas que se afigura incompatível com a prática de quem teve uma relação tão forte com a escrita? É que a prática da escrita implica, sempre, solidão e um quotidiano marcado pela tranquilidade da esfera privada.

Últimas questões, a que esta biografia não responde: até que ponto Álvaro Cunhal – cuja actuação se confunde com a organização do partido, com a sua tenacidade e pragmatismo, na organização do mesmo partido, no controlo dos traidores, nas alianças que procurou com outras forças e na consciência das etapas a percorrer até à vitória – foi o elemento decisivo que permitiu ao PCP implantar-se, na década de 1960, na sociedade portuguesa, como nenhum outro partido comunista europeu conseguiu? O que equivale a perguntar: foi, afinal, um homem sozinho que organizou um partido, apesar de o mesmo biografado ter sempre reivindicado a sua dissolução no interior do colectivo partidário ou no respeito pelas massas?

Ou, pelo contrário, foram as condições estruturais – de um país habituado ao poder pessoal de um ditador, apoiado numa polícia secreta, que não contava com uma classe média, nem com muitos círculos diversificados de uma opinião pública informada – que favoreceram a implantação de Cunhal e do seu partido clandestino? Ou, por último, foi a prosperidade da década de 1960 – tanto interna como nas colónias, que correspondeu à modernização industrial tardia, bem como à própria guerra, com as suas formas de doutrinação nacionalista – que Cunhal e o seu partido temeram e à qual se opuseram, por reconhecerem, nessa mesma prosperidade capitalista, um modelo social contrário ao de uma sociedade marxista-leninista?

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