Sapatos preparados com uma serra no seu interior, usados pelos operacionais da LUAR antes do 25 de Abril para, no caso de serem presos, poderem serrar as grades. Este exemplar pertenceu a Armando Ribeiro e é provávelmente o único que sobreviveu. A sola foi descosida e recosida e a serra está entre a sola e a palmilha. Alguns eram menos elaborados e tinham a serra por baixo da palmilha.
Rafael Galego tinha uns idênticos, mas estragaram-se nas peripécias de uma fuga em Espanha. Foi preso em 1973, com eles já em mau estado e quando estava a ser torturado e obrigado a manter-se de pé vários dias e noites, a preocupação com os sapatos era grande tanto mais que os pés inchavam. Rafael Galego foi um dos presos libertados depois do 25 de Abril.
Agradeço a Rafael Galego a oferta de um conjunto de material relativo à LUAR e uma longa conversa sobre a sua vida de militante oposicionista. Rafael Galego emigrou muito jovem para o Luxemburgo em 1969, onde trabalhou nas obras e depois como torneiro numa fábrica (fotografia no Luxemburgo). Aí contactou pela primeira vez com o sindicalismo livre na central sindical Lëtzebuerger Chrëschtleche Gewerkschaftsbond (LCGB) (história), onde havia alguns militantes católicos portugueses depois associados à BASE-FUT. Era conhecido como “Leão”, que era uma alcunha tirada do Crime do Padre Amaro de Eça, e que mais tarde tornou difícil a sua identificação pela PIDE, quando denunciado.
Os portugueses no Luxemburgo não tinham à época nenhuma organização, nem experiência laboral. A única greve que tinham feito foi contra um patrão que os despediu por terem faltado ao trabalho para irem ver um jogo do Benfica… A entrada de portugueses para a LCGB resultou num boletim O Trabalhador e num aumento da filiação sindical.
Em finais de 1971 veio para França e ligou-se à LUAR. Palma Inácio pediu-lhe que viesse para Portugal porque ,não estando ainda “queimado”, isso seria vantajoso para a organização. Rafael Galego veio e fez a tropa, de onde desertou para França de novo. Trabalhou mais uma vez nas obras e mais tarde no Hotel Moliére.
É enviado pela LUAR para uma missão no interior, em conjunto com vários militantes. O grupo é interceptado em Espanha e vários são presos. Rafael Galego e Ramiro Raimundo conseguem fugir e chegar a Portugal a pé. Vai para o Barreiro onde é preso em 22 de Setembro de 1973. É torturado pela PIDE e fica preso até ser libertado logo a seguir ao 25 de Abril.
Comunicado sobre a situação dos militantes da LUAR presos em Espanha.
Depois do 25 de Abril sai da LUAR mas mantendo sempre boas relações com os seus membros, tendo organizado alguns encontros de confraternização.
Alguns materiais oferecidos ao ARQUIVO EPHEMERA:
Mapa de uma zona de treinos da LUAR.
Carimbos no verso.
Sapatos com serra dentro.
Braçadeira da LUAR.
Emblemas.
Bandeirolas e estandarte da LUAR.
Comunicados.
ANEXO sobre Rafael Galego (Joana Pereira Bastos, OS ÚLTIMOS PRESOS DO ESTADO NOVO)
Para Rafael Galego, Palma Inácio era um líder mas também um amigo. Rafael envolveu-se no combate à ditadura muito antes de o conhecer. A luta estava-lhe no sangue. Cresceu em Trás-os-Montes, no concelho de Montalegre, junto à fronteira com a Galiza, para onde o pai foi destacado como encarregado de obra na construção de uma barragem. Viviam isolados de povoações, num bairro construído apenas para os trabalhadores da obra. Solidária com a oposição, a família ajudou muitas vezes emigrantes clandestinos e refugiados políticos a darem o salto para Espanha. Davam-lhes farnel e dormida, escondendo-os da polícia. Em 1958, tinha Rafael 8 anos, o pai participou activamente na campanha de Humberto Delgado para as eleições presidenciais. Ao irmão, nascido nesse ano, deu o nome do candidato para o homenagear.
Como grande parte da população naquela época, Rafael acabou a 4ª classe e deixou os estudos. Aos 12 anos começou a trabalhar na barragem como “pinche”, um aprendiz de mecânica. Três anos depois, a construção acabou e a família mudou-se para Alverca. De dia, o miúdo magro e de corpo franzino trabalhava como metalomecânico na fábrica da Mague; à noite, frequentava um curso de formação para serralheiros. Nessa altura, ainda adolescente, juntou-se ao PCP. Pouco depois, com 19 anos, e como tantos que a família tinha ajudado em Trás-os-Montes, saltou a fronteira para fugir à guerra. Chegou a França sem dinheiro, sem conhecer ninguém, nem falar francês. Dormiu ao relento em bancos de jardim ou escondido no metro, nas noites mais frias. Sem conseguir arranjar trabalho, juntou-se a outros portugueses e partiu para o Luxemburgo. “Nem sequer sabia onde ficava o país.”
Desta vez, no entanto, a experiência correu bem. Alugou um quarto, encontrou emprego numa fábrica e juntou-se a um sindicato, ajudando a criar uma secção portuguesa na confederação de trabalhadores do Luxemburgo. Um dia, em 1971, foi abordado por um membro da LUAR para se juntar à organização. Rafael hesitou. “Mentalmente ainda estava ligado ao PCP.” Poucos dias depois, Palma Inácio encontrou-se com ele para o convencer. A amizade começou aí. Ganhou-lhe uma admiração e um respeito profundos. Foi-lhe fiel até ao fim.

No início de 1973, Rafael e outros quatro jovens que, com ele, tinham recebido treino estavam prontos. Sentiam-se preparados para qualquer missão que a Organização decidisse atribuir-lhes. Cansados do treino e dos simulacros, queriam actuar. Pediram a Palma Inácio para os deixar ir para Portugal. A luta pela democracia fazia-se lá. Não a dois mil quilómetros de distância, “em guerrilhas de café”. Em Julho desse ano, a LUAR decidiu enviá-los. Rafael e um controleiro, o chefe do grupo, foram de carro, transportando todo o equipamento: pistolas, metralhadoras, radiotransmissores, detonadores eléctricos e cargas explosivas. Os outros quatro meterem-se num comboio até Salamanca, onde o grupo voltou a reunir-se. Numa serra junto à cidade espanhola, abandonaram o carro e distribuíram uma pistola a cada um, escondendo o resto do material em sacos de mão. A ideia era saltarem a fronteira e entrarem em Portugal a pé, como tantos outros emigrantes.
O plano era esse, mas não foi o que aconteceu. Na aldeia raiana de Navasfrías, a poucos quilómetros de Portugal, foram interceptados pela polícia espanhola e encaminhados até ao posto para se identificarem. Era meio-dia e o calor apertava. Nas mãos, cada vez mais transpiradas pela temperatura e pela ansiedade, levavam sacos carregados de armamento. À entrada da esquadra, tiveram de pousá-los. Nesse momento, um dos agentes baixou-se e abriu o primeiro saco. Lá dentro estavam embrulhos que escondiam os detonadores. Não havia tempo para pensar. Antes do polícia ver o que era, Rafael puxou da pistola que trazia escondida nas calças. Foi tudo demasiado rápido. Assustados, os polícias fugiram para dentro do posto, onde o controleiro e um dos elementos do grupo estavam a ser identificados. Rafael e os restantes quatro fugiram, cada um na sua direcção.
Dois foram apanhados. O outro encontrou Rafael algumas centenas de metros à frente. Juntos, afastaram-se o mais que puderam da povoação e subiram uma montanha. Durante horas andaram perdidos no meio da serrania, sem mapas nem bússolas. Já a noite ia alta quando encontraram um pequeno cemitério isolado. Pelos nomes e pelas inscrições gravadas nas lápides, aperceberam-se de que já estavam em Portugal. Aliviados e exaustos, deitaram-se junto às campas.
Na manhã seguinte, caminharam até uma aldeia com casas de pedra, perdida no meio da serra da Malcata. Não viam ninguém. A aldeia parecia deserta. Junto a uma casa de dois andares, com o gado guardado no piso térreo, viram estacionado um carro com matrícula francesa, provavelmente, de um emigrante de visita à terra, nas férias de Verão. Podia ser a solução para um dos seus problemas mais imediatos. No bolso, Rafael tinha quinhentos francos que conseguira graças à sua guitarra, que vendera em Paris, antes de rumar a Portugal. O companheiro não tinha nada. Precisavam de trocar os francos por escudos para comprar um bilhete de comboio ou de camioneta até Lisboa. Traçaram uma história convincente para contar e combinaram que seria Rafael a fazer a conversa.
“Ó da casa!”, chamou. A senhora veio à porta e convidou-os a entrar. Ao emigrante, filho da dona, explicou que tinham planeado ir viver para França e que já tinham trocado o dinheiro para francos quando os avisaram de que o país estava a travar a entrada de novos emigrantes. Desistiram, mas ficaram com aquele dinheiro que em Portugal não lhes servia de nada. O emigrante aceitou, sem reservas nem perguntas, fazer-lhes o câmbio. Serviu-lhes café e pôs na mesa pão, presunto e queijo.
Não comiam há mais de um dia e “estavam mortos de fome”. Quando Rafael se preparava para se servir, o filho do emigrante, uma criança irrequieta com 2 ou 3 anos, simpatizou com ele e foi sentar-se ao seu colo. Rafael tinha a pistola escondida nas calças, entre a cintura e o fecho. Teve medo de que a criança, que não parava quieta, a descobrisse. Pôs uma mão sobre a arma e com a outra agarrou o miúdo. Não sobrava nenhuma para tirar uma fatia de pão. Ao seu lado, o companheiro não parava de comer. A dona da casa via-o com gosto a deliciar-se e insistiu para que também Rafael se servisse. Ele não tinha como. Agradeceu, mas recusou, dizendo que estava sem fome.
Deixou a casa de barriga vazia. Sempre por caminhos afastados da estrada, continuaram até encontrarem uma linha de comboio. Seguiram os carris até à estação e compraram dois bilhetes para o Porto. Para despistar a polícia, saíram na Guarda e apanharam outro comboio rumo a Lisboa. Quando chegaram à capital “eram dois pardalitos isolados, clandestinos e sem forma de entrar em contacto com a Organização”. Era o mais importante. Tinham urgência em avisar Palma Inácio da prisão dos companheiros em Espanha. Foram bater à porta de um padre que Rafael sabia pertencer à LUAR e que já tinha sido preso uns anos antes. Contou-lhe que o grupo fora desmantelado e que só restava ele e outro companheiro. Pediu-lhe para ir a França avisar o líder e dizer-lhe que ficaria a aguardar o contacto para uma nova missão. Separou-se do amigo, que partiu para a Covilhã, de onde era natural, e rumou a Alverca, que conhecia bem.
Nunca chegou a ser chamado para outra operação. Foi preso pouco tempo depois, em 23 de Setembro de 1973, exactamente um mês após o desaire de Navasfrías. Sabendo, pela vida que levava, que o mais provável era ser apanhado, Rafael tinha pedido há muito a Palma Inácio e a outros ex-presos políticos pertencentes à Organização para lhe descreverem, ao pormenor, as torturas e os métodos da PIDE. Quando foi capturado, julgava saber o que o esperava, mas foi, afinal, muito pior do que antecipara e do que as descrições o tinham feito imaginar. Esteve um mês em privação de sono, considerada uma das mais difíceis, dolorosas e perturbadoras formas de tortura. Um mês sem se lavar, a andar aos círculos numa sala, à mercê de alucinações agoniantes e espancamentos periódicos.
Durante todo esse tempo, trazia nas palmilhas 11 folhas de serrote para tentar escapar. Há muito que andavam com ele, dentro dos sapatos, para o caso de um dia ser preso e precisar. No primeiro mês, no entanto, estivera sempre vigiado por um pide, pelo menos. Quando, ao fim de 31 dias de tortura, o tiraram da sala de interrogatório e o levaram em ombros para uma cela no reduto norte, onde o depositaram e o fecharam sozinho, já não tinha como as usar. Destruído, meio louco, sem força e sem fé, era uma amostra de homem com 52 quilos, que mal conseguia pôr-se em pé.
Mas estava orgulhoso. Conseguira resistir. Mal sabia que ainda não tinha acabado. Depois de dois dias a dormir, quando pensava que o calvário chegara ao fim, arrastaram-no, novamente, para mais seis dias e seis noites de tortura do sono. Implorou para o mataram. “Era preferível morrer. Já não encontrava sentido para o sofrimento” em que se encontrava. Lembrava-se das ameaças na Boca do Inferno e desejava que o levassem outra vez e que o atirassem ao mar ou que acabassem com ele ali mesmo, com um tiro certeiro e misericordioso. “Estava capaz de contar a vida toda, o que sabia e o que não sabia. Mais um minuto e teria falado.” Nesse instante, porém, foram buscá-lo e levaram-no ao gabinete do chefe de brigada. Entrou e viu pendurado num cabide um casaco de flanela aos quadrados que tão bem conhecia. De imediato, percebeu que todo o sacrifício fora em vão. Palma Inácio, o seu líder, o amigo a quem jurou ser sempre fiel, tinha sido apanhado.
ANEXO 2
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